Ressentimento e ferida narcísica
- Rafael Santos
- 5 de mar. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 30 de out. de 2023

Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, discuto a ideia de que o ressentido revive continuamente uma ferida, sem conseguir libertar-se dela.
Texto: O ressentimento não é um conceito propriamente psicanalítico, contudo, muitas discussões podem ser feitas partindo desse sentimento, relacionando-se diretamente às contribuições da psicanálise para pensar a experiência humana. No Brasil, Maria Rita Khel possui um livro inteiramente dedicado ao tema e será a nossa referência bibliográfica mais importante para a construção desse texto. O psicanalista argentino Luis Kancyper também forneceu reflexões interessantes sobre esse mesmo assunto.
O ressentido, ao ruminar suas dores, presentifica o que passou, como uma cena de filme congelada, que não consegue avançar em sua história. Muitas vezes, mágoa e ressentimento são compreendidas como sinônimos. Por outro lado, penso que a expressão mágoa remete ao afeto da tristeza e do pesar, enquanto que o ressentimento possui mais proximidade com a raiva e o ódio. Isso não significa que tais sentimentos possam se interligar.
O ressentido vive uma espécie de ferida aberta, que reinflama. O prefiro "re" denota algo que vai "para trás", que se repete. Ao mesmo tempo, é como se o ressentido não quisesse se esquecer, aponta Khel. Assim, percebemos na experiência do ressentimento um sentimento que parece não conseguir escoar, que retorna para o mesmo lugar de forma cíclica e repetitiva.
Nesse ponto, recordo da expressão "(não) levar desaforo para casa", trazendo a noção de uma injúria não resolvida, em que o sujeito a carrega por onde for, incluindo na sua maior intimidade (o lar). Carrega um ato ou palavra que ficou suspensa, "gerando uma disposição passiva para a queixa e a acusação" (Khel).
O ressentido, portanto, sente-se não só com raiva, mas de mãos atadas, incapaz de reparar o que ocorreu. Ao mesmo tempo, a vingança do ressentido nunca chega, pois está tomado pelo sentimento de impotência ou inferioridade. O que o ressentido perdeu, para Maria Rita Khel, não foi um objeto, mas um lugar: o sujeito reposiciona-se como inferior, dependente. Entramos aqui na dimensão da dependência infantil, da submissão a um poder que está em outro.
Há, assim, a impressão no ressentido de que o poder está fora dele, em outra pessoa. Ao implicar subjetivamente o paciente, o objetivo não é de deslegitimar o sofrimento do sujeito, mas de possibilitar uma nova voz, o surgimento de novas posições diante desse sofrimento. Um trabalho em que a travessia se dá não por um caminho da autoacusação ou da acusação, mas do compreender o desejo em jogo.
Até aqui, já pudemos perceber que o ressentimento é um sentimento específico, com diversas nuances e contornos. É diferente da raiva, ódio, vingança, mesmo que possa ter relação direta com essas experiências. Em "Ressentimento e Remorso", o psicanalista argentino Luis Kancyper refere que a questão do ressentimento ocupa um lugar central na clínica. Em um trecho, assinala a fala de um analisando que afirma que o ressentimento é igual a acelerar um carro atolado.
A vingança no ressentimento é continuamente adiada, postergada, e esse adiamento é o gozo, para utilizar um termo psicanalítico. Kancyper também fala em "Sua Majestade, o Ressentido", em referência à expressão "Sua Majestade, o Bebê", de Freud.
Segundo Fernanda Baeza e Jussara Dal Zot, "nessas situações, a libido está tenazmente ligada a um objeto devedor, prevalecendo uma inércia psíquica através da qual o paciente pode ficar retido na temática torturante". Há ainda um componente de idealização, pois o ressentido idealizaria aquele que teria provocado danos, como alguém que retém a perfeição, instalando um tempo cíclico, que não progride. Além de sentir-se ferido, roubado, o ressentido também costuma sentir-se inferior, em razão de tal idealização.
O futuro, nesse caso, é interrompido por um passado vivido com injusto, afixado em um tempo impossível de ser plenamente reparado, pois não volta mais. Para Khel, o ressentido sente-se roubado por algo que ele deu. A grande ferida é a de ter cedido o seu desejo. Talvez nesse ponto que o ressentimento diferencia-se de outros sentimentos.
Segundo Kancyper, "o ressentimento produz uma série de construções fantasmáticas que, por sua vez, o sustenta". Somos responsáveis por nossas construções fantasmáticas, o que não significa culpa, mas a possibilidade de nos implicarmos com o desejo que nos habita, muitas vezes de forma desconhecida. Como afirma Khel, “há um prejuízo pelo qual o sujeito foi co-responsável - no mínimo por ter cedido a um outro, sem lutar, sobre algo que dizia respeito a seu desejo".
Por fim, trago um questionamento trazido pelo livro da psicanalista, através de uma pergunta essencial para pensarmos a questão do ressentimento: "Um outro destino para a raiva que não pode se expressar é possível?".
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