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Compulsão Alimentar: Mastigar para Não ser Devorado


Caravaggio – "Ceia em Emaús" (1601)
Caravaggio – "Ceia em Emaús" (1601)

Como se sabe, comer demais não é, necessariamente, sinal de muita fome. E mesmo a fome pode não ser somente fisiologia. Há quem coma para silenciar, quem coma para lembrar. Há quem mastigue para não ter de pensar ou por não saber nomear..


A compulsão alimentar se instala quando a linguagem já não basta. É o corpo que tenta expressar, por vias concretas, o que não foi simbolizado. Nessa chave, a compulsão funciona uma tentativa de tentar dar forma a um sentimento sem nome.


A compulsão, porém, rompe o ciclo simbólico, retirando o sujeito da capacidade de traduzir sua experiência em linguagem compartilhável. O gesto de comer compulsivamente se torna um ritual solitário, uma fratura da representação.


Na psicanálise, a compulsão não é só um excesso. É uma repetição. Algo que retorna não porque funciona, mas porque não funciona — e, ainda assim, insiste. Ela marca um curto-circuito entre o afeto e sua elaboração.


Mas por que comida, e não outra coisa? Porque a oralidade é a primeira via pela qual o sujeito se relaciona com o mundo. A boca é, antes de qualquer coisa, lugar de vínculo: onde o leite materno encontra a fome, onde o choro encontra acolhimento (ou não). O alimento é, desde o início, carregado de sentido, sendo ainda energizado pela cultura. E por isso mesmo, pode ser ressignificado de maneiras diversas: como defesa, punição, recompensa, reparação, gozo etc..


Absorver o que se perdeu, o que se deseja, o que se teme? Mastigar para não ser devorado.


Nesse contexto, a ingestão de substâncias químicas costuma exercer um papel regulador. Não é à toa que o açúcar tem efeito analgésico, a gordura gera sensação de saciedade e o sal reorganiza o paladar como se restituísse algo. Mas o problema da compulsão não é o que se come, e sim o modo como. A forma diz mais que o conteúdo.


Aplacar a compulsão não é elaborar. Aplacar a compulsão é silenciar. A compulsão não transforma o afeto; abafa. Etimologicamente, “compulsão” vem do latim compellere — empurrar com força. A compulsão empurra o sujeito para um tempo que silencia o desejar, sem pausa para pensar. Ela é, muitas vezes, o contrário do desejo: o desejo precisa de fôlego; a compulsão, de urgência.


No setting psicanalítico, o oposto da compulsão não é o controle, mas a escuta. Escutar o que se tenta calar com comida. Para não ter que mastigar o indizível. Escutar o que está por trás do “não sei por que fiz isso”. Afinal, temos que dar os devidos méritos aos sintomas e soluções: diante de um mundo interno ameaçador, a compulsão surge como recurso — precário, mas eficaz — de autorregulação.


E no entanto, é possível fazer algo com isso. Quando a palavra retorna, quando o sujeito começa a nomear, a imaginar, a criar outras formas, a compulsão pode perder o lugar de soberania. A forma simbólica pode se instaurar onde antes havia apenas o ato.


Não é exagero dizer: quem sofre com a compulsão alimentar, sofre com algo que não sabe nomear. Come não só o alimento, mas o instante, a angústia, a pressa, a ausência.


E o que está ausente quase nunca é comida.


A compulsão não é o oposto do controle. É o fracasso da simbolização, como nos ensina o psicanalista Meltzer ao tratar do que não pôde se tornar imagem interna pensável. A comida, nesses momentos, não é sabor, nem prazer, mas instrumento de uma urgência: ocupar o corpo, anestesiar a mente, calar uma tensão.


A comida costuma ser um alívio fácil: está sempre ali, não julga, não nega, não vai embora. Diferente de quase tudo na vida.


Um vazio de significação.


Comer, então, torna-se um modo de existir quando pensar incomoda. Não é gula, é linguagem — fragmentada, silenciosa, visceral. A compulsão alimentar é o corpo tentando falar com a boca cheia o que não encontrou lugar na palavra. E talvez seja justamente aí que comece a elaboração: não no controle ferrenho de calorias, mas na escuta do que vem tentando ser dito entre um alimento e outro.








 
 
 

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