Mísseis teleguiados: Resenha sobre"A Hora do Mal"
- Rafael Santos
- há 8 horas
- 3 min de leitura
Observação: O texto contém spoilers.

"A Hora do Mal" começa como uma parábola de cidade pequena: às 2h17, dezessete crianças de uma mesma sala de aula saem de casa. Braços estendidos. Somem na madrugada. O horário exato influenciou na escolha do nome do filme para o Brasil, sendo o título original Weapons. Mais do que um terror de muitos sustos, "A Hora do Mal" estuda as reações de uma comunidade a esse evento.
O diretor Zach Cregger (o mesmo de Noites Brutais/Barbarian) aposta mais na ansiedade social do que nas aparições inesperadas. A violência costuma até aparecer meio disfarçada, em boatos, dedos apontados, sugestões, bodes expiatórios. Apenas no sonho de um dos personagens a violência se mostra mais visível, através de uma metralhadora flutuando no céu, gravada com o horário do sumiço das crianças.
A estrutura de cidade assombrada ecoa Stephen King, que não se esconde nas referências a O Iluminado e It. Outra referência é o filme Magnólia (Paul Thomas Anderson), principalmente na estrutura dos capítulos.
Em psicanálise, sabemos que a agressividade não some — ela precisa de elaboração simbólica para não virar atuação. A alusão à violência no filme é sutil, pois tenta focar no fato de que as pessoas podem se transformar, via dominação, em armas. Crianças e adultos instrumentalizados por poderes.
A professora Justine se transforma rapidamente em bode expiatório. Etimologicamente, Justine vem do latim iustus (“justa”, “equânime”), o que adiciona ironia ao fato de ela ser injustamente acusada. A violência em A Hora do Mal está muito mais na organização dos afetos (ou, ao menos, na maior parte do filme). Há um desfoque da violência das armas como objetos para focar na violência sistêmica.
A personagem Gladys é pensada para parecer inofensiva e meio kitsch, como se tivesse saído de um filme Sessão da Tarde e, ao mesmo tempo, com alusão ao palhaço de It. O diretor usa esse verniz cômico em outros momentos do filme. Ela converte pessoas em “mísseis teleguiados”, como o próprio filme apresenta em um momento, fazendo mais uma referência às armas, que no título original tem a referência explicitada. Pessoas como armas são produtos de um processo de zumbificação, uma alegoria à perda de consciência.
Em "Psicologia das Massas e Análise do Eu" (1921), Freud fala que a massa se liga por laços libidinais de identificação horizontal (entre membros) e identificação vertical com um líder que ocupa o lugar do Ideal do Ego. Nessa configuração, inibições caem: o superego próprio enfraquece e é substituído pelo “mandato” do líder/grupo. O psicanalista Bion na década de 60 também falou de que grupos sob angústia regridem a aspectos básicos: luta-fuga, dependência, esperanças mágicas. Outros psicanalistas que estudaram funcionamentos de grupos também apontam que quando o traume emerge, surgem pânicos, boatos, respostas persecutórias.
Em um trecho do filme, há aparição na TV de um documentário falando sobre um fungo parasitário que passa a controlar insetos (alguns fungos infectam formigas, por exemplo, e as induzem a fixar o corpo em posições que favorecem o espalhamento dos esporos) , que muito lembra o que acontece na própria história. A coreografia das crianças — todas saindo no mesmo minuto e da mesma forma peculiar — figura o contágio e do comportamento coletivo automatizado. Com a metáfora do fungo que domina insetos, A Hora do Mal lembra o espectador de que existem forças que guiam o hospedeiro a agir contra si. O efeito é do corpo transformado em uma arma teleguiada.
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