Resenha psicanalítica de "A Redoma de Vidro"
- Rafael Santos
- 20 de set.
- 3 min de leitura

Há romances que não apenas contam uma história, mas convocam o leitor a experimentar a mesma atmosfera dos personagens. A redoma de vidro faz isso desde a primeira página: a sensação de ar rarefeito, a vertigem de um mundo que perde textura e voz. Esther Greenwood narra a própria queda como quem observa, em um misto de fascínio e cansaço, o olho do furacão: “O silêncio me deixou deprimida. Não era o silêncio do silêncio. Era o silêncio que vinha de mim".
O livro de Sylvia Plath faz remeter a um conceito que a psicanálise contemporânea vem chamando de desvalimento: quando falha a possibilidade de ligar afetos a representações, e o aparelho psíquico desinveste o laço e a palavra.
Esse desvalimento também é das instituições e das cidades. No início do livro, a personagem aos poucos vai apresentando os impasses dos destinos femininos, as máscaras de normalidade e a exigência de estar sempre bem: “Mas tive a impressão de que a única coisa que esse artigo não levava em conta era o que as mulheres pensavam”. O romance mostra, com ironia, o teatro de máscaras exigido às mulheres — a noiva eficiente, a profissional cuidadosa, a mãe terna — e o quanto fracassar em “vesti-las” equivale a ser expulsa do humano. Sua recusa a ocupar papéis prontos — “Se querer duas coisas opostas ao mesmo tempo é coisa de neurótico, então eu sou uma neurótica de marca maior” — também fala das políticas de domesticação.
Ao longo do desenvolvimento da personagem principal, testemunhamos os efeitos de uma suspensão da capacidade de simbolizar: tudo "parecia tão bobo, porque no final todo mundo morria". As pessoas viram “manequins pintados para parecer pessoas”. Em termos clínicos, vemos a libido estancar e o mundo psíquico esvaziar-se de qualificação afetiva.
A redoma de vidro é também o relato de um luto adiado, não integrado: “Nesse momento eu me lembrei que nunca tinha chorado pela morte do meu pai”. Freud ensinou que o luto é trabalho de desinvestimento e reinscrição; quando fracassa, congela-se como melancolia: a perda fica sem objeto nomeável, o mundo escurece e o eu se empobrece.
A personagem principal oscila sem conseguir decidir “qual dos figos escolher”, morrendo de fome no galho das possibilidades. O romance captura o impasse da escolha quando a unidade interna está fragmentada. Isso aparece também na crítica à domesticação do desejo feminino: “depois de ter filhos eu ia me sentir diferente e não ia mais querer escrever poesia”.
A imagem da redoma de vidro remete a esse isolamento sem sem ocultar: todo mundo vê, mas nada toca. Esther ora sente-se exibida, ora separada. Dentro da redoma, respira-se o próprio hálito, no circuito fechado da ruminância — nada novo entra, nada velho sai. Na clínica do desvalimento, isso remete ao empobrecimento da ligação afetiva: o mundo sem cor nem contorno.
Esther confessa, em um momento da obra, que “nunca tinha chorado pela morte do meu pai” e que assume um luto que a mãe. O trabalho de luto congelado empurra a experiência para o registro melancólico. O livro é classificado como semi-autobiográfico: os impasses de classe, de gênero e o colapso depressivo, que também fizeram parte da vida da autora.
No começo, Nova York, cheia de “estrangeiros”, instala a sensação de não-pertencimento. Quando volta ao subúrbio, se vê cercada por imagens de donas de casa, grávidas e bebês. Em ambos os mundos Esther é estranha, alienada do próprio desejo. Os hospitais que Esther passa, lugar de cura, também desvitalizam.
Em última instância, A redoma de vidro também faz um diagnóstico de um arranjo social que, ao exigir máscaras incompatíveis e negar o luto, produz desvalimento e falsas adaptações. Plath mostra como a vitrine urbana e a moral doméstica apertam a subjetividade. Uma denúncia da cidade que não integra, seleciona e de um social que não acolhe, mas normaliza.




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