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Resenha psicanalítica de "A Redoma de Vidro"

"A Redoma de Vidro" de Sylvia Plath, originalmente publicado em 1963.
"A Redoma de Vidro" de Sylvia Plath, originalmente publicado em 1963.

Há romances que não apenas contam uma história, mas convocam o leitor a experimentar a mesma atmosfera dos personagens. A redoma de vidro faz isso desde a primeira página: a sensação de ar rarefeito, a vertigem de um mundo que perde textura e voz. Esther Greenwood narra a própria queda como quem observa, em um misto de fascínio e cansaço, o olho do furacão: “O silêncio me deixou deprimida. Não era o silêncio do silêncio. Era o silêncio que vinha de mim".


O livro de Sylvia Plath faz remeter a um conceito que a psicanálise contemporânea vem chamando de desvalimento: quando falha a possibilidade de ligar afetos a representações, e o aparelho psíquico desinveste o laço e a palavra.


Esse desvalimento também é das instituições e das cidades. No início do livro, a personagem aos poucos vai apresentando os impasses dos destinos femininos, as máscaras de normalidade e a exigência de estar sempre bem: “Mas tive a impressão de que a única coisa que esse artigo não levava em conta era o que as mulheres pensavam”. O romance mostra, com ironia, o teatro de máscaras exigido às mulheres — a noiva eficiente, a profissional cuidadosa, a mãe terna — e o quanto fracassar em “vesti-las” equivale a ser expulsa do humano. Sua recusa a ocupar papéis prontos — “Se querer duas coisas opostas ao mesmo tempo é coisa de neurótico, então eu sou uma neurótica de marca maior” — também fala das políticas de domesticação.


Ao longo do desenvolvimento da personagem principal, testemunhamos os efeitos de uma suspensão da capacidade de simbolizar: tudo "parecia tão bobo, porque no final todo mundo morria". As pessoas viram “manequins pintados para parecer pessoas”. Em termos clínicos, vemos a libido estancar e o mundo psíquico esvaziar-se de qualificação afetiva.


 A redoma de vidro é também o relato de um luto adiado, não integrado: “Nesse momento eu me lembrei que nunca tinha chorado pela morte do meu pai”.  Freud ensinou que o luto é trabalho de desinvestimento e reinscrição; quando fracassa, congela-se como melancolia: a perda fica sem objeto nomeável, o mundo escurece e o eu se empobrece.


A personagem principal  oscila sem conseguir decidir “qual dos figos escolher”, morrendo de fome no galho das possibilidades.  O romance captura o impasse da escolha quando a unidade interna está fragmentada. Isso aparece também na crítica à domesticação do desejo feminino: “depois de ter filhos eu ia me sentir diferente e não ia mais querer escrever poesia”.


A imagem da redoma de vidro remete a esse isolamento sem sem ocultar: todo mundo vê, mas nada toca. Esther ora sente-se exibida, ora separada. Dentro da redoma, respira-se o próprio hálito, no circuito fechado da ruminância — nada novo entra, nada velho sai. Na clínica do desvalimento, isso remete ao empobrecimento da ligação afetiva: o mundo sem cor nem contorno.


Esther confessa, em um momento da obra, que “nunca tinha chorado pela morte do meu pai” e que assume um luto que a mãe. O trabalho de luto congelado empurra a experiência para o registro melancólico. O livro é classificado como semi-autobiográfico: os impasses de classe, de gênero e o colapso depressivo, que também fizeram parte da vida da autora.


No começo, Nova York, cheia de “estrangeiros”, instala a sensação de não-pertencimento. Quando volta ao subúrbio, se vê cercada por imagens de donas de casa, grávidas e bebês. Em ambos os mundos Esther é estranha, alienada do próprio desejo. Os hospitais que Esther passa, lugar de cura, também desvitalizam.


Em última instância, A redoma de vidro também faz um diagnóstico de um arranjo social que, ao exigir máscaras incompatíveis e negar o luto, produz desvalimento e falsas adaptações. Plath mostra como a vitrine urbana e a moral doméstica apertam a subjetividade. Uma denúncia da cidade que não integra, seleciona e de um social que não acolhe, mas normaliza.


 
 
 

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