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Escavando a culpa

"Sonho Causado Pelo Voo de uma Abelha ao Redor de Uma Romã um Segundo Antes de Acordar" de Salvador Dalí (1944)
"Sonho Causado Pelo Voo de uma Abelha ao Redor de Uma Romã um Segundo Antes de Acordar" de Salvador Dalí (1944)

Nas sociedades tribais e cosmológicas mais antigas, não se falava em culpa interior, mas em tabu e mancha. Transgredir um interdito não era “errar” diante da própria consciência, e sim perturbar uma ordem cósmica: atraía má sorte, doença, esterilidade, a ira dos espíritos. O foco não era “o que eu fiz com o outro”, mas “o que fiz com o mundo”. A perturbação pedia rituais de purificação, sacrifícios, oferendas. A transgressão era vivida mais como impureza do que como falta moral.

François Sauvagnat mostra como a antropologia clássica tentou traduzir isso distinguindo culturas de medo, de vergonha e de culpa. Nas culturas de vergonha, o centro de gravidade é o olhar do grupo: o risco é “perder a face”. Nas culturas de culpa, o eixo passa a ser uma instância interna que acusa, mesmo sem testemunha.


Algo muda decisivamente quando emergem três dispositivos: o mito de um erro originário (culpa ancestral, dilúvios, “queda” primordial), o direito escrito (códigos como Hamurabi, que distinguem inocente e culpado, mesmo que ainda pouco atentos à intenção), as religiões éticas (hebraísmo, depois cristianismo e islã), nas quais a falta é quebra de aliança com um Deus pessoal.


Interiorizar o inferno


A culpa se torna também violação de uma norma com autor reconhecível – um Deus, uma lei, uma comunidade, um texto. De certo ponto de vista, de um lado, alarga-se o campo possível da culpa (até os pensamentos podem ser pecaminosos). De outro, institui-se um circuito institucionalizado de alívio: confissão, penitência, absolvição.


A partir da Idade Média e ao longo da modernidade católica, a Igreja investe fortemente em manuais de devoção e literatura penitencial para educar consciências. Obras como "Mestre da vida que ensina a viver e morrer santamente" (escrito pelo dominicano português João Franco, em 1731) detalham pecados capitais, prescrevem “remédios” espirituais, descrevem minuciosamente as penas do inferno e os modos de escapar delas.


Esses textos combinam catequese moral (o que é pecado, o que é virtude), estratégias de culpabilização interior e um uso intensivo de imagens do inferno, fogo, demônios, suplícios corporais, para produzir um impacto afetivo duradouro.


A leitura devocional, feita em família ou individualmente, transforma a culpa em experiência íntima, diária. O inferno está dentro do peito, na forma de medo e autoacusação. Não é à toa que surge, historicamente, o fenômeno da culpa enquanto uma consciência hipervigiada, inclinada ao escrúpulo, à autovigilância obsessiva, muitas vezes derivando em quadros que hoje chamaríamos de neuróticos ou obsessivo-compulsivos.


Freud: da culpa mítica à culpa como pilar da civilização


É Freud quem dá o salto decisivo: a culpa deixa de ser apenas tema da teologia e da moral para se tornar estrutura do desejo e motor da civilização. A culpa aparece relacionada ao inconsciente e intimamente articulada à angústia, presente na estrutura do desejo humano.


Em textos como Totem e tabu e O mal-estar na Civilização, Freud arrisca uma mitologia psicanalítica: uma horda primeva, um pai tirânico, a revolta dos filhos, o assassinato mítico, seguido de remorso e instituição do tabu do incesto e da proibição do homicídio. A culpa, aqui, é fundadora de laço social: sem ela, não haveria lei, nem cultura. Freud oscila entre a culpa de caráter universal, que sustenta o processo civilizacional, e a culpa individual, que atormenta o sujeito. A mesma energia que pacifica a horda, criando normas e religião, aparece na clínica como sintoma.


Freud inventa uma “pré-história” da culpa em Totem e Tabu e retoma isso em O mal-estar na civilização: a ideia de um crime primordial (o assassinato do pai da horda) que deixaria um rastro de culpa coletiva, depois transformada em religião, rituais, lei moral. É uma mitologia teórica, não um fato histórico, mas serve para dizer: a culpa nasce do encontro entre desejo violento e lei, mediado pelo amor e pelo medo de perder o vínculo.


Em O mal-estar, Freud dá outra fórmula: a culpa nasce quando a agressividade que não pode ser descarregada para fora é voltada contra o próprio eu, sob comando do superego. Ou seja, parte da nossa violência fica “presa” e se transforma em necessidade de punição. A culpa seria a expressão afetiva dessa autoagressão.


Culpa individual, inconsciente, supereu


Para Freud, o superego não nasce pronto: ele se forma a partir da história da criança, sobretudo na travessia do Édipo. No começo da vida, o bebê vive num registro muito mais corporal e narcísico (eu e prazer). Aos poucos ele encontra limites: “não pode”, “isso é feio”, “isso machuca”, “isso não se faz”. Esses limites chegam principalmente na voz das figuras parentais (ou de quem ocupa essa função), mas também de professores, cuidadores, da religião, da cultura.


Ao se formar o supereu, o eu passa a ser vigiado e julgado por uma instância crítica interna. Essa instância não pune apenas atos: pune também fantasias, desejos, pensamentos. Daí o caráter enigmático de muita culpa neurótica (“sinto que fiz algo terrível, mas não sei o quê”).


O superego não é literalmente os pais. É um substituto psíquico de figuras que vigiam, julgam, aprovam ou condenam. Ele é mais radical que os pais reais: pode ser mais rígido, mais cruel, mais absoluto do que qualquer pai em vida conseguiria ser. É por isso que às vezes o paciente diz: “meus pais nem são tão rígidos assim, mas eu me cobro como se tivesse um carrasco interno”.


Além disso, o superego não carrega só pai e mãe. Carrega ainda o superego dos pais (aquilo que já foi introjetado por eles), a moral da época, a religião, o discurso social. A criança aprende que certos desejos e atos custam caro: podem levar à perda de amor, à punição, à reprovação. Para não perder o amor dos pais, ela renuncia a agir de certas formas e passa a se vigiar por dentro. Quando um desejo proibido aparece (mesmo só em fantasia), o superego reage com culpa: uma tensão entre o “eu que deseja” e o “eu que julga”.


A culpa pode aparecer como remorso ligado a um evento ou uma culpa ligada à própria existência. Além disso, aquilo que sentimos como culpa muitas vezes é só a ponta de uma cobrança superegoica muito mais radical.


Sauvagnat nota que, ao longo da obra freudiana, o termo Schuld (culpa/dívida) aparece centenas de vezes, bem mais do que Scham (vergonha), o que revela a preferência teórica de Freud pela culpa como afeto estruturante, mais que pela vergonha.


Identificação, narcisismo e culpa


Se o superego é a interiorização das exigências parentais e sociais, a identificação é o mecanismo privilegiado dessa interiorização. Na teoria freudiana, a identificação está na gênese do aparelho psíquico: o eu é um “sedimento” de identificações, resultado de investimentos em objetos abandonados, que deixam marcas.


Isso traz um desafio psíquico: quando traio um ideal, não é um “outro” abstrato que me condena; é aquilo em mim que se constituiu por identificação. As figuras de autoridade saem de fora e passam a morar dentro. É dessa introjeção das proibições, ideais e exigências parentais que nasce o superego. Por isso Freud diz que ele é o “herdeiro do complexo de Édipo”.


Da culpa religiosa à culpa trabalhista e digital


Do ponto de vista sociológico, a culpa foi se “secularizando”. A ética protestante desloca boa parte da culpa do campo sacramental para o campo da produtividade: a vida reta, diligente, trabalhadora torna-se indício de eleição divina. Mais tarde, com o capitalismo tardio, essa equação vira pura performance: “valho o que produzo”. Quem descansa, falha, adoece, não performa – “se sente culpado”.


A lógica permanece a mesma: um ideal hiperexigente, interiorizado, se volta contra o sujeito. O discurso religioso do pecado é substituído pelo discurso da alta performance, mas a economia afetiva continua superegoica: “você não fez o bastante, você é insuficiente”.


O que essa arqueologia oferece à clínica?


Quando um paciente chega tomado de culpa (“não consigo parar de me culpar”, “acho que tudo é minha culpa”), essa arqueologia permite algumas operações clínicas. Uma das possibilidades é a de desinvidualizar sem negar. Mostrar a possibilidade que ele não “inventou” a culpa: há uma longa história religiosa, familiar, cultural que o antecede. Isso não elimina a responsabilidade, mas tira o caráter de monstruosidade (“só eu sou assim”). A quem essa culpa responde? A um Deus interiorizado? A um pai/mãe exigente? A um ideal de desempenho? Ou a uma dívida transgeracional (avós, país, “minha classe”, “meu povo”)?


Há culpas que apontam para um dano concreto – alguém foi machucado, traído, negligenciado; ali, cabe reparação, mudança, responsabilização. Há também culpas “flutuantes”, que não se ligam a nenhum ato, derivadas de um supereu feroz ou de identificações desastrosas (com agressores, com ideais inatingíveis).


A culpa tende a olhar para trás (“o que fiz ou deixei de fazer”). A responsabilidade olha para frente (“o que posso fazer agora com isso?”). Uma parte do trabalho analítico é deslocar a energia da autopunição para a criação de novas formas de laço, gesto, palavra. Revisar com o paciente de onde vem a voz que acusa, que mandatos ela porta, com quem ele se identificou para ser tão cruel consigo. Esse é o ponto em que a articulação entre identificação e culpa se torna material clínica: que pai/mãe/Deus/chefe ele encarna dentro de si?


Se apagamos a culpa, restam o acting-out, a indiferença ao outro, a violência sem freio. Se absolutizamos a culpa, restam a paralisia, a melancolia, a vida reduzida a pagamento de dívidas.


A culpa é narcísica?


Ela é, ao mesmo tempo, narcísica e relacional. É relacional porque originalmente está ligada ao laço: sinto culpa porque posso ferir quem amo, perder o amor deles, ou porque traí alguém, causei dano real a um outro. Mas é também narcísica porque toca diretamente a relação do eu com seus ideais e com sua própria imagem: “não fui à altura do que eu deveria ser”, “não correspondi ao meu ideal de eu”, “sou menos do que eu precisava ser para me amar”.


Também há o que Freud chama de masoquismo moral: pessoas que parecem “precisar” de culpa, se colocam sempre em posição de devedoras, se sabotam, escolhem situações onde serão punidas. A culpa, aí, vira quase uma fonte de satisfação (inconsciente): sofrendo, o sujeito confirma para o superego que ele está “pagando sua dívida”. Isso é bem narcísico: o eu goza em se ver culpado, em ser “especialmente mau”, “o pior de todos”.


Na clínica, dá para escutar isso assim: toda culpa diz alguma coisa sobre quem eu amo, o que eu quero e que tipo de eu eu acho que deveria ser.

 
 
 
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