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Paranoia e Controle em Don DeLillo e Christopher Bollas

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Neste texto, examino duas obras de Don DeLillo, Ruído Branco e Cosmópolis, à luz da leitura social da paranoia em Christopher Bollas, sobretudo no capítulo “Paranoia” do livro Meaning and Melancholia. O que me interessa é como a ficção de DeLillo encena um “clima mental” coletivo, enquanto Bollas fornece a gramática psíquica para falar sobre como o medo difuso se transforma em estilo de época.


Nesse capítulo, Bollas pensa a paranoia contemporânea menos como um quadro clínico isolado e mais como um modo de organização psíquica-coletiva. Quando a mente (ou uma comunidade) não tolera ambivalência, ela recolhe-se a um enclave que expele diferenças como se fossem contaminação. Paradoxalmente, isso dá coesão prazerosa ao self paranoide — um gozo de pureza sustentado pelo ato de excluir. O pluralismo, ao contrário, “drena” essa segurança porque exige incluir o que o aparelho paranoide se construiu para expulsar.


No plano social, Bollas afirma que esse estilo mental transborda para a política e para a vida democrática, onde a rejeição da complexidade e da pluralidade vira programa afetivo: a política organiza certezas, inimigos e narrativas simplificadas que dispensam elaboração. Assim, o psicanalista situa a paranoia em diálogo direto com política, democracia e a rejeição da complexidade — ela prospera quando a pluralidade vira ameaça.


No livro de Don DeLillo, uma família de classe média numa cidade universitária dos EUA tenta viver o cotidiano (aulas, supermercado, TV) até que um vazamento químico cria uma nuvem tóxica e obriga todo mundo a evacuar. O desastre vira espetáculo: helicópteros iluminam a nuvem como se fosse show. Na narrativa, medo e fascínio andam juntos. Depois, a vida continua aparentemente normal em sua banalidade — mas com o zumbido da morte no fundo.


 O medo íntimo é deslocado para sistemas de controle — mídia, consumo, farmacologia, administração do desastre — que oferecem segurança por expulsão. Em Ruído Branco, essa defesa se encarna na relação com os meios de comunicação e a ciência: o rádio, a televisão e as vozes especializadas funcionam como “objetos paranoides”, que prometem sentido num mundo saturado de dados e medo.


Em Ruído Branco, o que importa menos é “o que acontece” e mais é a atmosfera. Essa ambiência instável é a cenografia ideal do que Bollas chama de modo paranoide coletivo. A ida ao supermercado induzida por embalagens fluorescentes é a versão doméstica de uma defesa por acumulação.


Já no livro Cosmopolis, temos uma espécie de “dia-experimento” dentro de uma limusine: Eric Packer, bilionário de 28 anos, atravessa Manhattan para cortar o cabelo na antiga barbearia do pai. Em poucas horas, tudo desanda — a cidade está travada por visita presidencial, protestos antiglobalização, enquanto sua aposta contra o iene implode sua fortuna. Quase toda a ação se passa no interior do carro, onde Packer recebe conselheiros, médico, seguranças e amantes. É um romance curto, claustrofóbico, que acompanha a derrocada econômica e subjetiva de um ícone da “Nova Economia”.


Publicado em 2003 e ambientado em abril de 2000, Cosmopolis captura a ressaca do boom ponto-com e a fé (quase mística) na leitura algorítmica do mundo. O romance antecipa o curto-circuito entre hiperconectividade e desorientação. Aborda temas como a financeirização do cotidiano e a virtualização da experiência.


O personagem principal vive como se o mundo pudesse ser previsto e que a vida é uma planilha em tempo real. A cidade lateja em torno dele, mas o carro isola, traduz tudo na promessa de dados.  Essa barreira de vidro é o verdadeiro cenário do romance: o capitalismo financeiro como cápsula de luxo e medo, onde a percepção se torna estatística.


No meio do caminho, Packer recebe dentro da limusine o seu médico para um exame de próstata. A cena é simbólica: enquanto conversa sobre investimentos e volatilidade cambial, o médico introduz o dedo nele, e uma tela exibe a variação do iene em tempo real. O resultado: “a próstata é assimétrica”. A frase o desestabiliza mais do que a queda de bilhões — um dado corporal que escapa à matemática.


Essa cena resume Cosmopolis: a colisão entre o corpo biológico e o corpo financeiro, entre o imprevisível e o cálculo. O romance antecipa a era da hiperconectividade ansiosa, a solidão digital e a política de bolhas informacionais. O carro de Packer é a prévia do feed personalizado — confortável, previsível, impermeável ao real. A travessia pela cidade é o espelhamento de uma cultura que acredita poder navegar o caos apenas com mais dados.


DeLillo e Bollas convergem na leitura de uma cultura paranoica da certeza, que transforma o mundo em superfície previsível e expulsa o que não cabe no modelo. Cosmopolis dramatiza a mente que Bollas descreve: um sujeito sitiado em sua própria bolha de sentido, incapaz de tolerar a diferença que o resgataria.


Bollas usa o termo “enclave” em Meaning and Melancholia  para descrever o refúgio mental e social onde o sujeito paranoico se isola. Ou seja, o “enclave” não é apenas um espaço físico, mas um estado psíquico de retraimento coletivo, onde pessoas compartilham certezas e ódios, sentindo-se seguras por excluir o diferente. O enclave fornece ao self paranoico um “prazer de coesão” — um sentimento de pureza e identidade alcançado pela expulsão do outro, da ambiguidade, da dúvida


A cena do exame de próstata é o momento em que o enclave se fende. Enquanto o médico o toca, uma tela exibe a oscilação do iene. O corpo, com sua assimetria, invade o território do cálculo: é o “real” que a paranoia tenta negar. Como em Bollas, a intrusão do imprevisível é sentida como ameaça à coesão do self — e Packer reage radicalizando o controle, dobrando a aposta financeira.


Ambos os romances de Don DeLillo ganharam adaptações cinematográficas que ajudam a visualizar, em linguagem de imagem e som, as atmosferas de paranoia e isolamento que o autor descreve. Ruído Branco foi adaptado em 2022 por Noah Baumbach, com Adam Driver e Greta Gerwig, e lançado pela Netflix. O filme mistura humor ácido e apocalipse doméstico, transformando o “Evento Tóxico Aéreo” em um espetáculo colorido e absurdo — uma sátira visual do medo mediado pela mídia e pelo consumo.


Cosmópolis, dirigido por David Cronenberg em 2012, traz Robert Pattinson no papel de Eric Packer e condensa o romance inteiro dentro da limusine, transformando-a em cápsula existencial. O filme traduz com precisão a frieza, o tédio e a alienação algorítmica do protagonista, deixando o corpo, o dinheiro e o delírio se fundirem em um mesmo enquadramento.



 
 
 

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