Resenha de "Louco Para Ser Normal" (Adam Phillips)
- Rafael Santos
- 24 de nov.
- 6 min de leitura

“Louco para ser normal”, a tradução brasileira de Going Sane do psicanalista Adam Phillips, é um livro que começa com uma cena que poderia ter saído de um pesadelo jurídico e termina com uma pergunta silenciosa, mas insistente: que tipo de vida estamos chamando de “sanidade”?
O caso inicial — um condenado à morte que precisa ser medicado para ficar “são o bastante para ser executado” — funciona como chave de leitura para o livro todo. Phillips parte de um diagnóstico incômodo: falamos muito de loucura e praticamente nada de sanidade. Há bibliotecas sobre psicose, depressão, colapsos; há estatísticas, fármacos, serviços, protocolos, edifícios inteiros dedicados à loucura. Já os “sãos” não têm rosto, nem número, nem lugar.
A sanidade aparece como pressuposto vago, nunca como questão em si. O projeto do livro é justamente reabrir essa conta. Em três movimentos: primeiro, fazer notas rumo a uma definição de sanidade; depois, examinar nosso fascínio pela loucura, usando infância, sexo e dinheiro como campos de prova e, por fim, arriscar uma descrição de uma sanidade contemporânea que não seja apenas o outro nome para riqueza, segurança e longevidade. Se não formos capazes de imaginar a sanidade como uma forma de prosperidade psíquica, ficamos condenados a uma cultura que só sabe falar em doença, risco e colapso.
Na primeira parte, Phillips vai a Shakespeare, e mais precisamente a Hamlet, para mostrar como a nossa imaginação foi treinada para dramatizar a loucura e tornar a sanidade invisível. Em toda a obra de Shakespeare, a palavra “sane” quase não aparece; já “madness” e seus derivados emergem com frequência. Isso vale para a clínica: sabemos descrever com detalhes os modos de desintegração, temos escalas, diagnósticos, rótulos; mas, quando alguém pergunta o que seria uma vida mental realmente boa, a resposta escorrega para slogans genéricos (“equilíbrio”, “saúde”, “bem-estar”) ou para indicadores externos (emprego, casamento, produtividade). A sanidade é “membro fantasma”: sentimos que falta, mas não sabemos onde ela estaria no corpo da cultura.
A partir daí, o livro faz uma arqueologia da palavra “sanity”. Ela nasce colada à higiene mental, à medicina, ao vocabulário jurídico, mas nunca ganha um desenvolvimento teórico robusto. O que impressiona, na leitura de Phillips, é o desequilíbrio: a loucura está saturada de imagens, metáforas, narrativas; a sanidade, esvaziada.
É aqui que Winnicott entra em cena no livro. Numa nota de rodapé, quase lateral, Winnicott diz que, se somos apenas “sãos”, somos pobres. As primeiras experiências do bebê são de uma intensidade assustadora: estados de desintegração, excitações sem nome, desamparo radical. Há ali uma espécie de “insanidade boa”, que é a matéria prima da vida psíquica. Crescer, em grande parte, é aprender a se defender desse excesso; mais tarde, o adulto batiza essa defesa de “sanidade”. Phillips lê isso com malícia: aquilo que chamamos de “ser são” pode ser, frequentemente, um distanciamento das experiências que mais importam para nós. Sanidade como defesa tão eficiente que nos deixa meio mortos por dentro. A arte, nesse quadro, vira um modo privilegiado de manter contato com esse self primitivo e intenso, sem precisar se destruir.
Quando o livro avança para a infância, a imagem fica ainda mais aguda. Phillips lembra a tradição que vê o bebê como uma espécie de ser “fora da sanidade”: incontinente, improdutivo, sem linguagem — tudo aquilo que associamos à loucura. As teorias de desenvolvimento e as mitologias cristãs de salvação acabam reforçando a mesma cena: a criança teria de ser “resgatada” de seu próprio caos. Ser são, então, seria ser salvo da própria infância. Na prática, esse encaixe nunca é completo, mas continuamos a tratá-lo como horizonte.
A adolescência aparece como o momento em que essa ficção começa a rachar. O conflito deixa de ser apenas moral (“sou bom ou mau?”) para se tornar erótico. A cultura adulta, vista a partir daí, parece um pacto de acomodação: gente que escolheu um tipo de sanidade baseada em previsibilidade e reputação. É nesse contexto que o capítulo “Sane Sex” soa como um diagnóstico do presente. “Sexo são” soa, de saída, como contradição em termos; se sanidade remete a autocontenção e dignidade, o erotismo envolve queda de defesas, risco e desorganização.
No livro a discussão se alarga para o século XIX e XX. As ciências biológicas e sociais, duas guerras mundiais: a imagem romântica de um eu destinado ao florescimento é corroída por todas as frentes. Passamos a nos ver como animais, efeitos de lutas de classe, produtos de genes e circunstâncias num universo indiferente. O que há para ser conhecido sobre nós não é exatamente reconfortante. Daí a suspeita que atravessa o capítulo: talvez o ser humano, se soubesse mesmo o que é, enlouquecesse; ou talvez já esteja louco de um jeito socialmente gerenciável. A fronteira entre “normais” e “loucos” se embaralha; quase todo mundo vive com a sensação de que, se pensar demais, desmonta.
Quando o assunto é dinheiro , o livro atinge um ponto especialmente incômodo. Phillips parte da ideia de que o apetite “natural” do bebê — por alimento, afeto, reconhecimento, novidades — pode se converter, sem muito esforço, em amor ao dinheiro e ao que ele promete comprar. O dinheiro vira uma espécie de desejo em estado puro: não vale por si, mas pelo que “poderia” proporcionar. Ter dinheiro é também ter garantia de que sempre haverá algo a desejar, uma próxima compra, uma experiência a adquirir. Phillips insiste que amar dinheiro como posse é, em si, uma propensão semi-patológica, mas muito respeitada.
A cultura aplaude justamente esse tipo de insanidade: ganância como vitalidade, acumulação como mérito. O resultado é que o desejo deixa de ser desejo de coisas, pessoas ou experiências concretas e passa a ser desejo de manter o próprio desejo ligado à tomada, sempre em modo “mais um pouco”. Sanidade, aqui, seria a capacidade de reconstruir uma escala de valores que inclua coisas e relações que não podem ser convertidas em moeda — e de reconhecer o quanto nossas ambições profissionais, fantasias de sucesso e até certas formas de intimidade já foram capturadas por uma economia psíquica.
Não há retorno possível a um “estado natural” de equilíbrio, porque o próprio conceito de natureza é atravessado pela cultura. Não se trata de descobrir “a verdadeira sanidade”, universal e atemporal, mas de escolher que tipo de sanidade pode ser útil numa época saturada de diagnósticos. Propõe uma definição modesta e exigente: sanidade como capacidade de suportar a própria história, pessoal e coletiva, sem perder inteiramente o desejo de viver. Não é uma vida sem conflito, nem sem dor, nem sem medo; é uma vida em que o sofrimento não precisa ser o único modo de se sentir intensamente vivo.
Essa proposta se amarra na distinção que atravessa o livro entre sanidade superficial e sanidade profunda. A sanidade superficial é limpa, educada, razoável, previsível. São pessoas ajustadas, sem grandes excessos, que nos tranquilizam porque confirmam que “está tudo bem” se você se adapta. É uma forma defensiva de esquecer a loucura — tanto a própria quanto a social. Já a sanidade profunda é descrita como algo mais próximo de um herói trágico que atravessou provas difíceis e saiu vivo, mas sem grandes ilusões. É alguém que conhece a loucura de perto, em si e no mundo, e “tem a medida” dela. Não se deslumbra com promessas de controle total, nem acha que basta um bom contexto para tudo se resolver. Em diálogo com Winnicott, Phillips sugere que muita sanidade adulta tem qualidade sintomática: é incapacidade de tolerar estados de desorganização que são parte da vida. A verdadeira sanidade, ao contrário, exige sustentar uma dose de “loucura boa”. Intensidade, descontinuidade, momentos de estranheza.
Lido da posição de analista, Louco para ser normal é uma espécie de reflexão ampliada da nossa relação com a palavra “saudável”. Ele nos obriga a desconfiar das versões muito arrumadas de “ficar bem”, da pressa em transformar qualquer perturbação em sintoma a ser silenciado, da tentação de vender uma sanidade que se confunde com adaptabilidade, eficiência e paz aparente. Ao mesmo tempo, o livro não romantiza a loucura. Mas tenta multiplicar descrições habitáveis de vidas em que possamos reconhecer as nossas loucuras sem desistir de versões mais sãs de nós mesmos. No fundo, a pergunta que fica é simples e incômoda: quando dizemos que alguém está “bem”, de que sanidade estamos falando?




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