top of page

Piera Aulagnier e seus conceitos fundamentais


ree

A psicanalista Piera Aulagnier nasceu em Milão, em 1923, e viveu parte da infância no Egito, durante os anos turbulentos da Segunda Guerra Mundial. Formou-se em Medicina e especializou-se em Neuropsiquiatria em Roma antes de mudar-se, em 1950, para Paris — cidade que se tornaria o eixo de sua vida intelectual.


Aulagnier foi inicialmente uma das vozes mais promissoras da Escola Freudiana de Paris, mas sua inquietude teórica logo a conduziu ao dissenso.  Em 1967, rompeu com Lacan após discordar do procedimento do “passe”, que ela via como uma forma de hierarquização institucional, e fundou, junto a outros analistas dissidentes, o Quatrième Groupe — uma tentativa de construir uma psicanálise mais democrática, crítica e aberta à dimensão política e cultural do sujeito.


Casou-se com o filósofo e psicanalista Cornelius Castoriadis, com quem compartilhou uma relação de intensa interlocução intelectual. O diálogo entre ambos — ele, interessado na criação do imaginário social; ela, nas origens do pensamento e da subjetividade — deu origem a um dos cruzamentos mais fecundos entre psicanálise e filosofia do século XX.


Aulagnier foi uma pensadora de fronteira. Médica por formação, percorreu as camadas mais fundas da experiência humana: do corpo à palavra, do olhar à imagem, do afeto à representação. Faleceu em Paris, em 1990, deixando um legado de originalidade teórica que redefiniu a clínica das psicoses e ampliou o campo da metapsicologia, ao propor que o pensamento nasce do encontro entre o corpo e a linguagem.


Pictogramas


Os pictogramas, em Piera Aulagnier, são traços psíquicos derivados de experiências corporais e sensoriais. Eles constituem as primeiras tentativas do psiquismo de registrar algo da experiência vivida, antes mesmo da linguagem ou da representação simbólica. Em outras palavras, o pictograma é a matéria-prima do pensamento: um registro afetivo e sensorial que antecede o simbólico e serve de base para que, mais tarde, a linguagem e as imagens possam ser formadas.


Piera Aulagnier desenvolveu a ideia de pictograma em sua obra La Violence de l’Interprétation: Du pictogramme à l’énoncé (1975) — em português, A Violência da Interpretação: do pictograma ao enunciado. Esse livro é considerado o marco fundador de sua teoria da representação, onde Aulagnier propõe que o psiquismo se constrói a partir de três modos de funcionamento — originário, primário e secundário — e introduz o pictograma como a primeira forma de inscrição psíquica das experiências corporais e afetivas.


Os pictogramas não pertencem apenas ao início da vida — eles continuam atuando silenciosamente em cada sujeito, como a base afetiva sobre a qual o pensamento e o desejo se constroem. Esses traços primordiais — impressões de calor, fome, prazer, presença, ausência — são o “alfabeto emocional” que estrutura o modo como cada pessoa sente, imagina e interpreta o mundo. Aulagnier explica que, mesmo quando o sujeito já domina a linguagem, os pictogramas permanecem ativos no inconsciente, sustentando as experiências de prazer e desprazer, moldando os sonhos, os sintomas e as formas de relação com o outro.


"Esta figuração de um mundo-corpo que é o pictograma, não pode ter lugar no processo primário ou secundário, nem fazer parte de nenhum recalcado secundário que só contém representações que já sofreram o trabalho do diretor (metteur en scène) e daquele que dará o sentido" (Piera Aulagnier no artigo Nascimento de um Corpo, Origem de uma História)

Assim, cada um de nós carrega um “arquivo pictográfico” pessoal — feito das primeiras sensações que nos ensinaram o que é prazer, o que é falta e o que é o outro. É sobre esse solo invisível que toda história psíquica se ergue.


Pensamento originário, primário e secundário


Piera Aulagnier propõe que existem três tipos de pensamento, correspondentes a três modos de funcionamento psíquico: originário, primário e secundário. Cada um deles representa um nível diferente de complexidade na forma como o sujeito pensa e representa o mundo.


Pensamento originário: É o mais primitivo e corporal. Corresponde ao nível das representações pictográficas. Nesse estágio, ainda não há linguagem nem distinção entre o eu e o mundo. O pensamento é vivido como sensação; o bebê “é” suas experiências, sem refletir sobre elas.


Pensamento Primário: Surge quando a criança começa a construir fantasias e cenas internas, o que Aulagnier chama de representações cênicas ou fantasmáticas. Aqui aparecem os primeiros roteiros mentais que organizam o desejo: mãe, seio, ausência, prazer, perda. É o domínio do inconsciente freudiano, regido pelo princípio do prazer e pelas formações imaginárias.


Pensamento Secundário: É o pensamento já estruturado pela linguagem e pela lógica. Corresponde às representações ideativas — o nível em que o sujeito pode narrar, refletir, planejar e dar sentido às experiências. Opera sob o princípio da realidade, permitindo que o Eu pense, fale e simbolize o vivido de modo coerente e comunicável.


Aulagnier enfatiza que esses três modos não desaparecem com o tempo — eles coexistem em todo ser humano. A saúde psíquica depende da articulação harmônica entre eles: o corpo (originário), o desejo (primário) e o pensamento consciente (secundário) devem dialogar, e não se excluir


Quando o processo secundário falha em representar o vivido, os níveis mais primitivos assumem essa tarefa — o que pode resultar em manifestações psicóticas, somatizações ou crises emocionais. Em outras palavras, quando o sujeito não consegue pensar uma dor, o corpo ou o delírio “pensam por ele”.


Aulagnier mostra que toda representação nasce do corpo, atravessa a imagem e se organiza pela palavra — um percurso de transformação contínua entre sensação, imaginação e linguagem.

"O Eu não é nada mais do que o saber do Eu sobre o Eu e a esta definição" (Piera Aulagnier em A Violência da Interpretação)

Representações


Para Piera Aulagnier, as representações são o núcleo do funcionamento psíquico — o modo como o sujeito transforma o vivido em algo pensável, traduzível e assimilável. Só há atividade psíquica quando o sujeito consegue representar, isto é, apropriar-se do que vem de fora e transformá-lo em algo compatível com seu aparelho mental. Os elementos que não passam por essa “metabolização simbólica” — porque são intensos demais, traumáticos ou precoces — não encontram lugar no espaço representativo e, portanto, “não existem para o sujeito”. Essa falha de inscrição pode levar a rupturas psíquicas, como a forclusão ou a irrupção psicótica.


Assim, para Aulagnier, quase tudo no psiquismo é representação — o pensamento, o afeto, o sonho, o sintoma. Mas existe, sim, um campo anterior à representação: o pré-representacional, ligado ao corpo e ao afeto bruto, onde ainda não há forma simbólica nem imagem. O que não é representado, não é assimilado — permanece como excesso, estrangeiro, fora do campo do Eu.


Violência da interpretação


Aulagnier usa esse termo para descrever o impacto que o discurso do Outro exerce sobre o sujeito, sobretudo nas fases iniciais da vida e também na clínica. Desde o nascimento, o bebê é alvo de uma avalanche de palavras, desejos e fantasias parentais — ele é falado antes de poder falar de si. Essa antecipação, inevitável, é uma “violência simbólica necessária”, porque é por meio dela que o sujeito entra na linguagem e ganha um lugar simbólico no mundo.


Mas essa mesma violência pode tornar-se destrutiva quando o discurso do Outro (ou do analista, no caso da clínica) impõe sentidos, nega o sujeito ou o reduz a uma interpretação fixa. Essa violência interpretativa fere o Eu, fragmenta sua identidade e impede que ele se aproprie da própria palavra.

"(...) se impõe à psique de um outro uma escolha, um pensamento ou ação, motivados pelo desejo daquele que o impõe, mas que são entretanto, apoiados num objeto que para o outro corresponde à categoria da necessidade” (Piera Aulagnier em A Violência da Interpretação)

Desde antes de nascer, o bebê já é falado, imaginado e nomeado. A mãe e o pai constroem discursos, pequenas sentenças que antecipam uma identidade e inscrevem o infans em uma história que não é a sua. Essa antecipação é o que Aulagnier chama de “violência de antecipação”: o sujeito é colocado dentro de uma narrativa antes mesmo de poder dizer “eu”.


Ela é necessária, porque sem ela o bebê não teria lugar simbólico no mundo; mas pode tornar-se opressora quando o discurso parental é rígido, idealizado ou hostil, como em frases que negam o valor do filho (“você é um erro”, “você me destruiu”).


Sombra falada


Antes mesmo de nascer, o bebê já existe no inconsciente materno e no discurso familiar. Ele é sonhado, imaginado, nomeado, descrito — “vai ser menino”, “vai ter o temperamento do pai”, “vai me completar”, “não era o que eu queria”. Essas palavras formam uma camada simbólica prévia, uma “sombra de linguagem” que envolve o corpo antes da vida psíquica começar.


"A particularidade do Eu se encontra no fato de que no início ele foi efetivamente a ideia, o nome, pensamento falado pelo discurso de um outro" (Piera Aulagnier em Os Destinos do Prazer).

A sombra falada não desaparece com o tempo. Ela se transforma nas vozes internas que narram e julgam o sujeito — as frases herdadas, os ideais e as proibições que moldam sua história. Quando o sujeito consegue reinterpretar essas vozes, transformá-las em matéria de pensamento, a sombra se torna memória e história. Mas quando não há elaboração — quando a voz do Outro é sentida como invasão ou perseguição —, a sombra se torna ameaçadora, podendo reaparecer em sintomas, delírios ou autoacusação.


A sombra falada não vem apenas dos pais — ela é transgeracional e histórica. Cada mãe fala a partir de um lugar social, de uma língua, de um tempo. O bebê, ao nascer, herda também a história cultural que atravessa quem o fala. Aulagnier chama isso de dimensão histórica materna: o conjunto de discursos e significações que a mãe carrega e transmite, como parte invisível da herança simbólica. Assim, a sombra falada é também a sombra da cultura sobre o sujeito — as crenças, papéis e proibições que definem quem ele “pode” ser.


Discurso identificante


O discurso identificante é aquele proferido pelo Outro (geralmente os pais, educadores ou figuras de autoridade) que diz ao sujeito quem ele é — antes mesmo de ele saber de si. É um discurso que nomeia, descreve, define, e, ao fazê-lo, inscreve o Eu em uma rede simbólica. Essas sentenças, que parecem banais, funcionam como atos fundadores: elas oferecem identificações primitivas, moldando o modo como o sujeito se percebe e é percebido.


O discurso identificante nasce do desejo do Outro — do amor, da fantasia, do medo e da história que o antecede. Mas ele também carrega o risco daquilo que Aulagnier chama de “violência interpretativa”: quando o discurso nomeia de forma excessiva, quando fala por o sujeito em vez de a ele, o Eu é sequestrado pela palavra alheia.


Processo originário


O processo originário é o nível mais primitivo do funcionamento mental, aquele em que o bebê ainda não distingue entre o “eu” e o “outro”. É o campo onde o corpo e o psiquismo ainda são uma coisa só — onde o prazer, o calor, o toque e a presença da mãe se gravam como traços sensoriais e afetivos, antes mesmo da linguagem ou da imagem.


Esses traços formam o que Aulagnier chama de representações pictográficas, ou pictogramas. Aulagnier revoluciona a psicanálise ao afirmar que o pensamento nasce do corpo. Cada experiência é inscrita como um traço de satisfação ou de falta, um registro do encontro entre o corpo e o mundo. Esse primeiro contato é o que Aulagnier chama de “teoria do encontro”: o bebê e a mãe formam uma cena inaugural, onde o inconsciente materno oferece um contorno simbólico às sensações do bebê, transformando o biológico em psíquico.


O processo originário é, portanto, o berço da representabilidade — o momento em que algo do vivido começa a ser “traduzido” internamente. Não há ainda palavras, apenas inscrições. Quando algo é vivido de forma intensa demais (dor, ausência, invasão), pode não se deixar representar, permanecendo como excesso, como “não metabolizado” — o que, mais tarde, pode retornar como trauma, delírio ou sintomas.


T0, T1 e T2


Aulagnier concebe o desenvolvimento psíquico em três tempos — T0, T1 e T2 — que ajudam a entender como a potencialidade psicótica se forma e se estabiliza.


  • T0–T1: tempo das identificações primárias e imaginárias, ligadas ao corpo e à imagem especular.

  • T1–T2: tempo das identificações simbólicas, quando o Eu começa a elaborar o luto das primeiras fusões e passa a assumir uma posição mais autônoma.

  • T2: momento de conclusão provisória, em que o sujeito integra suas identificações e reconhece a castração simbólica — isto é, aceita os limites e as diferenças.


Eles descrevem o processo de constituição do Eu — desde o nascimento psíquico, quando o bebê ainda é puro corpo, até o momento em que pode narrar sua história e sustentar uma identidade.


Contrato Narcisista


Aulagnier define o contrato narcisista como um pacto implícito entre o sujeito e o conjunto social, pelo qual a sociedade promete reconhecimento, pertencimento e valor em troca da adesão do indivíduo aos seus ideais, significações e normas compartilhadas. Ela escreve que esse contrato é “a base de qualquer sujeito possível”, pois é por meio dele que o indivíduo se reconhece e é reconhecido como alguém com valor, nome, história e lugar.


Esse contrato não é consciente — ele é a base simbólica sobre a qual o sujeito se reconhece e é reconhecido. Através dele, o Eu recebe as primeiras “garantias de existência”: nome, filiação, língua e os ideais de verdade e identidade que sustentam sua inserção no mundo.


Mas esse mesmo contrato que funda o Eu pode se tornar fonte de alienação quando se torna rígido — quando as “certezas” e valores coletivos deixam de oferecer sustentação e passam a impor obediência e uniformidade.


Porta-voz


O porta-voz é aquele que fala pelo bebê, geralmente o cuidador principal, e que introduz o infans (aquele que ainda não fala) no universo simbólico da linguagem. Ele coloca em palavras o que o bebê ainda não pode pensar ou dizer — nomeia suas sensações (“está com fome”, “está com frio”), interpreta seus gestos, organiza suas experiências.


Ao fazer isso, projeta sobre o corpo do filho o discurso social, familiar e afetivo que o inscreve em uma ordem de sentido. O bebê, ao ser nomeado e investido pelo desejo do outro, começa a formar a base de sua identidade, internalizando os “pensamentos identificantes” do porta-voz, isto é, as palavras pelas quais é pensado e amado.


 
 
 

Comentários

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação
bottom of page