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Memória e psicanálise: música tocada ao vivo

Atualizado: 30 de out. de 2023


"Woman with a lute" de Johannes Vermeer (1662-1664)
"Woman with a lute" de Johannes Vermeer (1662-1664)
Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, discuto a ideia de que a memória é um conceito fundamental na psicanálise, pois atravessa uma série de conceitos, como transferência, trauma, repetição, recalque, clivagem, pulsão de morte e inconsciente.

Texto: A dimensão da memória parece atravessar a psicanálise em toda a sua diversidade: desde os conceitos de transferência, trauma, repetição, recalque, clivagem, pulsão de morte, até mesmo o cerne da noção de inconsciente. Mais que um baú contendo recordações de um passado empoeirado, a psicanálise transformou a memória em uma torrente que não cessa de fluir.


Ao descentralizar o papel da consciência humana e apontar para a existência de uma “outra Cena” nos sonhos, nos atos falhos, nos sintomas e nas fantasias de cada sujeito, a memória passa a ser vista como sendo habitada pela pulsão. Memórias, afinal de contas, que se escondem em outras, como traz Freud em seu texto “Lembranças Encobridoras”, de 1899. Ou mesmo a busca por reencontrar lembranças que sequer foram completamente encontradas, mas que deixaram trilhas para uma ilusão de completude. Não estamos mais diante de um passado que passou, mas de uma espécie de tempo que traz marcas e inscrições, as quais se presentificam de forma contínua, costurando o tecido da subjetividade.


"Uma teoria psicológica digna de consideração precisa fornecer uma explicação para a memória”, escreve Freud (1895), em um tom que soa como uma inquietação e um desafio ao mesmo tempo. Nesse, que é um dos seus primeiros trabalhos, “Projeto para Uma Psicologia Científica”, ele vislumbra o funcionamento psíquico costurado por neurônios com funções distintas, barreiras de contato, excitações e percepções. Em carta a Fliess (1896), escreve que está trabalhando na tese de que "a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos; que ela é registrada em diferentes espécies de indicações". Uma memória, de tal modo, sujeita a novos arranjos e reinvestimentos.


Na clínica, fundamento para a construção da teoria na psicanálise, as recordações dos analisandos atravessam a dimensão do fato até o campo da fantasia. Na direção de tal via, a noção de trauma em psicanálise também é um conceito fundamental em relação à memória. Na construção teórica, aparece relacionado à compulsão à repetição e à pulsão de morte. O traumático tem um elemento invasivo e disruptivo, colocando em questão os limites do simbólico. Conforme Flávia Sollero-de-Campos (2009) em artigo científico, a psicanálise também irá trabalhar com a dimensão do não-representacional, que na obra freudiana alcança a mais completa tematização em “Além do princípio do prazer” (FREUD, 1920).


Desse modo, é importante considerar memórias que não estão encapsuladas pela palavra, cruzando aqui o conceito de Freud de "representação-coisa" e "representação-palavra", que se relaciona com as distinções entre inconsciente e consciente. Traços mnemônicos que impactam o sujeito em seu estado emocional, o que inclui também, como vimos, experiências pré-verbais e sensações somáticas inscritas no aparelho psíquico. Por parte do que pode ser evocável, a coletânea de traços fornece ao sujeito, de algum modo, uma espécie de amparo, uma historicização do seu eu, oferecendo um senso de identidade, de continuidade, de permanência.


Habitamos as memórias. Mas as considerações da psicanálise ao longo dos anos apontam que o oposto também é verdade. As memórias nos habitam, construindo pontes, cercas, apagamentos e esconderijos.


Traços, marcas e associações


Falar de memória também é falar de marcas sociais, tradições, tabus e ordenações coletivas. Além de memórias que, inclusive, talvez, não possam ser lembradas. Memórias sem lembrança, tatuadas no corpo, bem como as experiências deixadas sob o fluxo contínuo de presenças e ausências. Memórias-buracos, memórias-relevos, memórias-esquecimentos, que riscam a subjetividade.


"A memória faz a agulha correr para dentro e para fora, para cima e para baixo, para lá e para cá. Não sabemos o que vem a seguir ou o que virá depois", escreve Virginia Woolf (1928). Novas memórias reverberam em marcas psíquicas já presentes. Durante um trabalho analítico, as lembranças também trazem notícias do estado psíquico daquele momento e das associações costuradas pela agulha do presente, através de uma dimensão da memória relacionada a associações simbólicas e representativas, mas também à memória do corpo. Freud em 1939 sugere que "os traumas são ou experiências sobre o próprio corpo do indivíduo ou percepções sensórias, principalmente de algo visto e ouvido, isto é, experiências ou impressões". As últimas palavras, separadas por um 'ou', parecem simples e quase intuitivas, entretanto, carregam muitos significados e reflexões teóricas.


Esquecer, nesse sentido, possui mais relação com o processo de integração da memória do que uma destruição do vivido. No contexto analítico, uma memória que se visita e se elabora não apenas por haver a fala, mas igualmente por uma escuta que implica em uma presença sensível, indo, então, além do que é processado pelo ego, pois nutre-se ainda pelo que não foi sequer pensado.


As considerações sobre o trauma induzem ainda a refletir sobre pedaços de memórias que operam como experiências não subjetivadas, mas que deixaram marcas profundas, produzindo ruídos: "Os elementos-beta (na ausência de função-alfa para convertê-los em elementos-alfa) só servem para evacuação ou para armazenamento - não como memória - mas como ruído psíquico", afirma Thomas Ogden (2010), fazendo referência aos conceitos do psicanalista Wilfred Bion.


A psicanálise, portanto, a partir do legado freudiano, continuou desenvolvendo a noção da memória, sua constituição e seus efeitos no psiquismo, considerando, além do recalque, processos como a clivagem e a noção de trauma. Tais desdobramentos também ampliaram o próprio conceito para além apenas da clínica. No Brasil, por exemplo, é pouco possível pensar a subjetividade de uma forma ampla sem refletir sobre sua memória escravagista, a destruição dos povos indígenas e da terra, a ditadura, todas essas memórias ainda reatualizadas em cada história singular e que repercutem nos acontecimentos e circunstâncias do tempo presente.


Memórias e ruídos no contemporâneo


O filósofo Walter Benjamin (1936) fala sobre os soldados que, ao final da guerra, após viverem tantas experiências traumáticas, ao invés de voltarem mais ricos em narrativas, retornavam mais pobres em experiência comunicável. Posteriormente, Giorgio Agamben (2005) acrescenta, sobre esse apontamento de Walter Benjamin, que "nós hoje sabemos que, para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de modo algum necessária, e que a pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, perfeitamente suficiente". Agamben fala da imediatez e do caos de estímulos que produz diversos eventos ao longo de um único dia, mas não necessariamente experiências. É preciso, portanto, se debruçar, e a psicanálise tem muito a pensar acerca do lugar da memória no nosso tempo.


Psicanalistas contemporâneos dão ênfase à importância de se considerar na clínica atual os elementos de memória não simbolizados, não pensados. Nessa dimensão, o recordar e o elaborar parecem entrar em curto-circuito, dando lugar à repetição e desinvestimentos articulados à pulsão de morte. A tríade recordar-repetir-elaborar, portanto, torna-se insuficiente quando o analisando não é capaz de representar algumas experiências devidamente, a partir do trabalho psíquico de ligações.


A memória na atualidade se depara com um modo de vida que parece dificultar a integração das experiências e favorece uma desarmonia com a própria intimidade subjetiva. O digital, intensificado na pandemia, torna-se um elemento frequentemente intrusivo, do qual não se pode escapar. Em poucos segundos com o celular em mãos, somos inundados por mensagens, fatos, opiniões, comunicações e eventos do mundo inteiro. A descontinuidade e a fragmentação aparecem como características desse tempo.


Da mesma forma que Freud escutou o seu tempo para dar início à construção do campo psicanalítico, com maior ênfase na neurose e, especificamente em relação ao trabalho clínico, na força patogênica do recalque, os psicanalistas da contemporaneidade buscam escutar o mundo presente, pois isso reflete diretamente com as demandas clínicas que chegam aos consultórios e produzem efeitos em relação ao manejo.

 
 
 

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