top of page

Identificação: laços que perduram

Atualizado: 15 de jul. de 2021

ree
"Prayer at Sainte Anne d'Auray" de William-Adolphe Bouguereau (1869)

No senso comum, conceitos psicanalíticos como os de repressão, recalque e projeção acabaram ganhando maior notoriedade na sociedade. Isso acaba deixando uma sombra em outros conceitos fundamentais da teoria, como a identificação. Neste texto, pretendo esboçar a importância desse tema para a psicanálise. Trata-se, entretanto, de uma discussão que não visa se aprofundar na complexidade da questão.


A identificação é considerada um processo constitutivo no psiquismo humano, ligada estreitamente com a questão da oralidade, principalmente de acordo com a teoria freudiana. Laplanche e Pontalis em seu “Vocabulário da Psicanálise” utilizam a seguinte definição: "Processo psicológico pelo qual um sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo desse outro. A personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações".


No sentido psicanalítico, as identificações não são escolhas, mas produtos inconscientes de investimentos emocionais, o que implica contradições e impasses importantes, como identificar-se com elementos e aspectos de uma relação de forma egodistônica (desagradável ou implicando em um sofrimento para o sujeito). Freud afirmou, por exemplo, que "é de notar que, nessas identificações, o ego às vezes copia a pessoa que não é amada e, outras, a que é".

As identificações constroem núcleos de moralidades, ideais do ego, modos de resoluções de conflitos, muito do que a psicologia costuma chamar de personalidade, ou seja, os traços característicos que perduram em circunstâncias variadas. Isso significa que somos resíduos de identificações (inconscientes) a partir das nossas diversas relações, principalmente aquelas que marcaram as nossas experiências mais primitivas.


No texto "Psicologia de grupo e a análise do ego" (1921), Freud define a identificação como "a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa". Acredito que o termo laço é importante, pois ajuda a pensar na identificação como conexões, resíduos psíquicos que são formados a partir das interações e relacionamentos ao longo da vida, com ênfase na infância. Por tornarem-se de intersubjetivos para intrapsíquicos, esses resíduos fazem parte da constituição do sujeito.


A identificação não precisa ocorrer necessariamente com uma pessoa em sua inteireza, mas principalmente com partes dela, incluindo fantasias inconscientes, o que é um tema rico para pensarmos a questão da intergeracionalidade - resíduos intersubjetivos ao longo das gerações (bisavós, avós, pais, por exemplo) que vão se cristalizando intrapsiquicamente. Como Freud em “Totem e Tabu” (1912-1914) indica ao abordar o mito da refeição totêmica, a identificação possui relação com apropriar-se de partes, pedaços, parcialidades.


Estamos, assim, diante da complexidade humana: de quem são os aspectos que nos habitam? Quais fantasmas são, na verdade, advindos dos outros? Os processos identificatórios inconscientes geram padrões de comportamento, repetições, muitas vezes sentidas como forças antagônicas as quais o sujeito trava guerras internas. Nesse aspecto, é comum escutar discursos como "tenho medo de envelhecer e me tornar igual ao meu pai" ou "tento fazer de tudo para ser o oposto do que minha mãe foi".


Da forma como compreendo, as identificações são como lentes que o sujeito se utiliza para entender o mundo. Principalmente no início da vida humana, tudo é extremamente claro metaforicamente, indistinguível. As identificações iniciais fornecem, através das relações intersubjetivas, modos de compreender a realidade, tanto interna, aquilo que se passa dentro do nosso corpo, como externa, aquilo que o sujeito paulatinamente começa a perceber que não possui controle, como imaginava em sua ilusão de onipotência. O que é muito importante nesse contexto é que as identificações também produzem distorções, fantasias, exigências e ideais.


Identificação e identidade


É interessante pensarmos nas semelhantes entre identidade e identificações. Pensando que o "eu é um outro", conforme o poeta francês Arthur Rimbaud, a estrutura psíquica do sujeito não é gerada por ele mesmo, mas a partir de relações, encontros, presenças e ausências que se dão com um outros seres semelhantes.


Seguindo a fórmula de Rimbaud de que o "eu é um outro", quando estamos falando de alguém da nossa convivência, seja nossos pais, chefes, colegas, companheiros amorosos, estamos falando da gente, de como somos afetados. Ou melhor, de como nos responsabilizamos por nossos afetos diante dessas relações, uma vez que em psicanálise, desde Freud, é extremamente importante a implicação subjetiva, a responsabilidade com nosso desejo, mesmo que muitas vezes não saibamos qual ele é (ou até saibamos, mas não "sabemos que sabemos").


Pensando na conjuntura da modernidade, o sociólogo Anthony Giddens destaca o componente de alta reflexividade que a identidade possui atualmente. Ou seja, a identidade torna-se uma construção aberta, em que a pergunta "Quem sou eu?" (baseadas na tradição) muda para perguntas como "De que forma eu gostaria de narrar a minha vida?" (baseadas na perspectiva de um futuro em aberto, totalmente desconhecido). Tal mudança propõe novos desafios clínicos, com ênfase na presença das identificações negativas, pois funcionam como resíduos de partes do eu que o sujeito gostaria de deixar à margem ou apagadas em sua história de vida.


Podemos pensar a importância da identificação para a personalidade comparando com a formação de uma rocha, por exemplo, que se desenvolve a partir de fragmentos soltos que acumulam-se e se sedimentam. Tal rocha guarda não só a sua própria história, mas também da natureza e do ambiente ao seu redor. Da mesma maneira, o sujeito, enquanto uma constelação de identificações, carrega não só a sua própria vida, mas também restos, pedaços, porções de afetos que se desenvolveram enquanto seres sociais. Ao contrário do que pode-se pensar, entretanto, em psicanálise não se trata de uma entidade fechada, mas viva e dinâmica. A escritora portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen possui um poema que diz: "A terra o sol o vento o mar / São a minha biografia e o meu rosto / Por isso não me peçam cartão de identidade / Pois nenhum outro senão o mundo tenho / Não me peçam opiniões nem entrevistas / Não me perguntem datas nem moradas / De tudo quanto vejo me acrescento".


Eu e o outro


Desse modo, as identificações podem se dar sob a forma de colagens em padrões e dinâmicas, formas de ver, ser e estar no mundo, sob a influência das interações com os outros.

A identificação pode ser movida como um ato inconsciente que envolve amor, ódio e reparação. Para utilizar um exemplo a fim de tentar ser didático, podemos pensar em um adulto que se sente ferido emocionalmente pela atitude de uma figura querida da sua vida. Tal ferida pode resultar em sentimentos e fantasias de ódio que, mais tarde, são reparados via identificação, uma espécie de "fazer as pazes inconsciente" ou uma homenagem produto da compensação do ódio. O sujeito pode se sentir parecido com seu pai ou sua mãe. O psicanalista Thomas Ogden no livro "A matriz da mente" atravessa essa questão ao abordar o superego: "A identificação com pais proibidores que subjaz o estabelecimento do superego é motivada, em grande parte, pelo desejo de fazer reparações aos pais, a quem o sujeito ama e por quem sente culpa devido aos desejos assassinos e incestuosos".


Em Freud, a identificação também é tida como uma saída para o conflito edípico, o que também influencia o desenvolvimento do superego. Da mesma forma, processos de desidentificações (através de desinvestimentos) podem ocorrer durante uma experiência analítica. Em "Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise", Zimerman acrescenta que "uma vez desidentificado de certos aspectos que lhe eram desarmônicos e opressores, o paciente abre um espaço psíquico para processar neo-identificações".


Complexidade


A identificação também tem relação direta com os estudos sobre luto, psicologia da massa, dos sonhos e de gênero. Para Maria Cecília Pereira da Silva, por exemplo, em capítulo do livro " A psicanálise e a clínica extensa", "os fenômeos transgeracionais e intergeracionais são transmitidos a partir das identificações mórbidas, ou seja, aquelas encarregadas de transmissão". Desse modo, aquilo que é introjetado morbidamente não é transformado, mas atua de forma intrusiva e invasiva ao psiquismo do sujeito.


Segundo Winnicott, a identificação primária do bebê é com o seio da mãe, em que ele se torna o seio, a partir de uma experiência primitiva de indiferenciação entre eu e objeto. Nesse período, o bebê ainda não teria uma noção de dentro e de fora do seu corpo (essa percepção é apenas de um observador externo). Para a psicanalista Elsa Dias, "ao encontrar-se com o objeto subjetivo, o bebê faz uma experiência de identificação primária com o objeto, ou seja, o bebê torna-se o objeto: ele é o seio". Lacan também trouxe contribuições muito importantes para se pensar os fenômenos da identificação, a partir do estádio do espelho, dos significantes e do conceito de traço unário.


A identificação é ainda considerado um processo de comunicação. Os pais ao cuidarem de um recém-nascido, precisam identificar-se às necessidades do bebê, para poder suprir suas necessidades. Já no início da adolescência, é comum a identificação com figuras midiáticas que o sujeito vê como símbolos de prestígio e de referência, projetando uma imagem ideal ("identificação heróica"). Também podemos pensar no conceito fundamental de identificação projetiva, mas acredito que o mesmo merece uma discussão discussões à parte.


Para uma discussão que junta a identificação com a questão da transmissão geracional, sugiro a leitura deste artigo. Para uma reflexão sobre a identificação e as contribuições de Lacan acerca do significante, sugiro este trabalho. Quanto ao conceito de identificação com o agressor, a obra de Ferenczi é fundamental, bem como textos acadêmicos que rediscutem esse importante tema.

 
 
 

Comentários

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação
bottom of page