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George Lakoff e como metáforas nos moldam

"A Leitura" de Henri Fantin-Latour (1877)
"A Leitura" de Henri Fantin-Latour (1877)

Publicado por George Lakoff e Mark Johnson em 1980, Metáforas da Vida Cotidiana propõe uma virada simples e radical: metáforas não são enfeites da linguagem; são estruturas do pensamento e da experiência. Traduzindo: pensamos por metáforas, decidimos por metáforas, sofremos e amamos por metáforas.


 O livro também discute metáforas orientacionais (cima/baixo, dentro/fora) que ancoram estados afetivos e valores (“feliz é para cima”, “depressão é para baixo”), e metáforas ontológicas, que transformam processos em coisas (“a inflação devora nossos salários”), permitindo quantificar, localizar, controlar.


Há pontos de contato férteis entre a linguística cognitiva de George Lakoff e a psicanálise, sobretudo quando aproximamos três eixos: metáfora, corpo/afeto e enquadre (frame). Para Lakoff, o pensamento é intrinsecamente metafórico: não usamos metáforas só na linguagem; nós “raciocinamos por metáforas”. Se, em Lakoff, metáforas como a de “tempo é dinheiro”, por exemplo, organiza gestões da vida (“gastar”, “economizar”, “perder” tempo), em psicanálise a metáfora também opera organizando o sofrimento e o desejo: “peso nas costas”, “nó na garganta”, “vazio no peito”.


Quando alguém utiliza expressões e metáforas como essas, não estamos diante de figuras decorativas, mas de mapas que articulam sensações, memórias e escolhas, com efeitos clínicos palpáveis. A clínica pode escutar como esses esquemas orientam narrativas e relações. A psicanálise encontra nos sintomas, nos sonhos e na transferência uma gramática de metáforas e deslocamentos. Em ambos os campos, portanto, metáforas não “ornamentam” o dizer; elas organizam a experiência, orientam inferências, criam previsibilidade afetiva.


Para esse autor, metáforas não são enfeites da fala: estruturam o próprio raciocínio. Sugere ainda que a cognição emerge de rotinas sensório-motoras. Esquemas como caminho, recipiente, equilíbrio, cima/baixo, força/contato organizam categorias, raciocínios e emoções. Ou seja, o corpo não apenas expressa pensamentos, mas dá a forma inicial deles. Essa concepção ressoa com a psicanálise contemporânea (Ferenczi, Winnicott, Green), que entende o pensamento como continuação do corpo e do afeto. O “frame” não é puramente cognitivo: ele é afetivo e somático, como a pulsão. Freud, em Projeto para uma Psicologia Científica (1895), já sugeria algo próximo: as representações se ligam a quantidades de excitação corporal. Lakoff retoma esse elo, agora em linguagem neurocognitiva: o sentido é corpo organizado pela metáfora.


Ele questiona a ideia de que pensamos por símbolos abstratos neutros, separados do corpo e da cultura. Em Filosofia na Carne, defende um “realismo incorporado”: a razão é moldada por corpo, emoção e experiência situada. Metáforas não são meros adornos linguísticos, mas sim elementos centrais do pensamento humano, enraizados na experiência corporal.


Acentralidade da metáfora para formar sentido converge com a intuição clínica de Freud sobre condensação (afinada com metáfora) e deslocamento (afinada com metonímia) no trabalho do sonho e do sintoma. Quando um paciente diz “tenho um nó na garganta” ou “carrego um peso nas costas”, Lakoff ajuda a explicitar que não é figura de linguagem inofensiva: é mapa inferencial que organiza percepção, memória e ação — exatamente o tipo de organização de sentido que a psicanálise interroga no eixo desejo-conflito-repetição.


Em segundo lugar, o corpo como base da cognição dialoga com pulsão, inscrição somática e clínica psicossomática. As chamadas metáforas orientacionais (“para cima/para baixo”, “dentro/fora”) não são meros clichês; são traçados do corpo em movimento, continuamente reencenados na vida psíquica.  Isso conversa com leituras pós-freudianas (Winnicott, Bion) sobre como experiências elementares de holding, separação, quedas e recomeços moldam o universo experiencial.


No artigo “A metáfora conceptual no discurso psicanalítico sobre a depressão”, Ferreira investiga quais metáforas conceituais são empregadas por psicanalistas ao falar sobre depressão, e o que revelam sobre a compreensão dessa condição. O estudo analisou falas de psicanalistas em vídeos do YouTube (totalizando 71 minutos), mapeando expressões metafóricas recorrentes. Os resultados mostram que, inconscientemente, os analistas tendem a conceitualizar a depressão como um agente externo com vontade própria, frequentemente personificando-a como um inimigo a ser combatido, onde o paciente assume o papel de parte fraca ou em posição inferior. Metáforas bélicas e de possessão são predominantes – por exemplo, falar que o indivíduo “luta contra” a depressão ou que está “dominado” por ela. O artigo conclui que as escolhas metafóricas não são triviais: elas moldam a forma como profissionais e público entendem o sofrimento psíquico.


O caminho de Lakoff ganha espessura quando lembramos que, para ele, a mente é corpo-em-ato. Esquemas sensório-motores — agarrar, empurrar, aproximar, recuar, conter — sustentam redes conceituais.  Em termos psicodinâmicos, certos “microgestos” do corpo funcionam como matrizes de sentido: há pacientes que vivem o tempo como algo a “apertar”, relações como algo de que “se agarrar” e conflitos como uma força que “empurra” para fora de cena.


Os frames de Lakoff — estruturas que selecionam o que é relevante e guiam inferências — dialogam com o enquadre analítico e com a noção de fantasia. Um frame político (“estado como pai rigoroso” vs. “pai cuidador”) organiza juízos morais; uma fantasia fundamental organiza expectativas transferenciais. Ao interpretar, o analista não apenas “explica”; ele também reencuadra, oferecendo outro campo de pertinência para os afetos e as narrativas.


A ideia de Georges Lakoff de que fatos isolados não “quebram” frames, mas são absorvidos por eles, é útil para entender a resistência: interpretações não perfuram defesas por força lógica; precisam ressonar com esquemas afetivos e imagens-núcleo já em jogo.  


Por exemplo, sonhos frequentemente mapeiam domínios corporais para dilemas relacionais (“engolir um objeto” como destino pulsional; “ficar preso” como conflito com limites). Lakoff permitiria descrever essa cartografia como mapeamentos sistemáticos entre domínios fonte (corpo, espaço, movimento) e domínios alvo (vínculos, lei, perda).


Na clínica, sabemos que ouvir prototipias pessoais — o que “conta como” amor, traição, cuidado, abuso — revela geometrias afetivas que não coincidem com definições escolares.


Um possível diálogo entre Lakoff e a psicanálise não elimina tensões. A linguística cognitiva tende a descrever regularidades transversais; a psicanálise insiste na singularidade do sujeito e no inconsciente como campo de equívoco, não redutível a “mapas universais”. A interlocução produtiva nasce justamente desse atrito: usar os instrumentos de metáfora, frames e corpo para qualificar a escuta, sem perder a aposta analítica na opacidade, no lapso, no resto que resiste à captura conceitual. Quando isso acontece, o trabalho clínico se torna simultaneamente mais rigoroso (porque mapeia esquemas) e mais delicado (porque escuta o que excede qualquer esquema).


Freud descreve no A Interpretação dos Sonhos os mecanismos de condensação e deslocamento, nos quais imagens substituem e disfarçam outras. Lakoff na obra Não Pense Em Um Elefante descreve algo análogo ao falar de metáforas conceituais: “quando negamos um quadro, o ativamos ainda mais”. O exemplo clássico do livro — “Não pense em um elefante!” — mostra que negar uma imagem é reforçá-la. Lakoff o faz pela via linguística e neural; Freud, pela via pulsional e simbólica. Ambos descrevem um pensamento que não se governa por vontade consciente, mas por redes prévias de significação.


Em termos práticos, o analista pode: prestar atenção sistemática às metáforas recorrentes; identificar imagens-esquema corporais em sonhos e queixas somáticas; nomear frames morais e afetivos; propor pequenas variações de frame que preservem a verdade do sofrimento e ampliem o repertório de ação; e acompanhar como essas mudanças reverberam na transferência. Assim, a psicanálise mantém seu núcleo — desejo, conflito, repetição, transferência — enquanto ganha lentes cognitivas úteis para descrever como o sentido se encarna, se move e se transforma na fala e no corpo.


Um exemplo dessas ideias é que concebemos o “eu” por metáforas: um “eu interior”, um “eu verdadeiro”, um “eu dividido”, um “eu em guerra consigo mesmo” — expressões comuns que revelam um sistema simbólico.


A aproximação entre a psicanálise e Lakoff é possível, mas exige freios conceituais. Primeiro, é vital não confundir “inconsciente cognitivo” com inconsciente dinâmico. Em Lakoff, o inconsciente são rotinas de mapeamento, esquemas e frames que operam fora da consciência. Além disso, as mesmas metáforas (“peso”, “vazio”, “travado”) podem corresponder a lógicas fantasmáticas distintas em pacientes diferentes. É necessário ter em vista o risco de transformar a escuta num catálogo de metáforas, apagando a história e a transferência.


Quanto ao corpo, as ênfases se tocam mas não se sobrepõem. Em Lakoff, o corpo fornece imagens-esquema para pensar; na psicanálise, o corpo é também corpo pulsional, erotizado, atravessado por defesa e gozo.



 
 
 

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