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Cybercondria

"At the doctor's" de Vladimir Makovsky (1900).
"At the doctor's" de Vladimir Makovsky (1900).

A psicanálise nos costuma lembrar que o corpo, na hipocondria, pode se tornar um objeto perseguidor — uma superfície onde se inscrevem fantasias, medos e vigilância constante. A versão digital dessa perseguição é a cybercondria: a escalada de preocupações com a saúde a partir de buscas online, onde um simples “dor de cabeça” se transforma, em poucas páginas, em “tumor” ou “aneurisma que se rompeu”.


Não é mais apenas a sensação física que dispara o medo, mas o hipertexto, a imagem, o algoritmo que oferece, antes mesmo que se peça, uma lista de desfechos fatais possíveis. O ambiente digital acrescenta ainda uma camada. Fóruns, redes sociais e influenciadores profissionais da saúde oferecem diagnósticos implícitos, histórias de “descobertas tardias” e “sinais que os médicos ignoram” — uma estética do alerta permanente que seduz justamente por falar a língua da exceção.


Talvez o ponto mais inquietante seja este: a cybercondria não nasce apenas de um excesso de informação, mas da nossa dificuldade em lidar com o resto — aquilo que não se sabe, não se mede, não se fecha em diagnóstico. No intervalo entre um incômodo corporal sentido e um diagnóstico dado, abre-se o espaço da angústia; e é justamente aí que o algoritmo se apressa em ocupar o lugar da informação.


O que as pessoas veem no topo das páginas tende a parecer mais provável (negligenciando taxas-base), reforçando viés de disponibilidade e confirmação. A proporção de pessoas que consomem informação de saúde online é bastante significativa; mas mais do que o volume, importa a forma: interfaces premiam o engajamento e tornam o alarme mais visível. O “conhecimento” tende ao paranoico.


Evolutivamente, é melhor confundir sombra com predador do que o contrário. Na hipocondria, o apelo ao registro corporal funciona como defesa elementar diante do pulsional; quando patológica, o corpo vira objeto perseguidor. A cybercondria só troca o estetoscópio por um simples navegador:


O trabalho analítico, nesse contexto, não é “desligar a internet”, mas sustentar algum não saber sem imediatamente preenchê-lo com mais dados. A escuta pede interpretações pouco saturadas no início, que ajudem a sonhar o indizível, ao invés de disputar certezas com o Google, até que algo do conflito possa ser dito, e não apenas checado o tempo todo.








 
 
 

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