Claustrofobia e Angústia de Confinamento
- Rafael Santos
- 26 de fev.
- 4 min de leitura
Atualizado: 25 de abr.

A claustrofobia que hoje aperta o peito pode ter começado muito antes de qualquer elevador fechado ou avião. Donald Meltzer sugere que o verdadeiro claustro não é apenas uma sala pequena demais, mas um território mental, um espaço interno onde as partes do self tentam sobreviver confinadas dentro de um objeto que já não é mais o outro, mas um pedaço de nós mesmos.
O pânico, então, não é só medo do pouco espaço: é a vertigem de habitar um interior habitado de nossos próprios fantasmas. A ansiedade claustrofóbica, nesse sentido, traria notícias de uma memória encarnada de um colapso antigo: se me aproximo demais, sou devorado; se me afasto, sou abandonado.
Nessa dança, a angústia claustrofóbica não reage apenas o espaço físico; teme o espaço psíquico entre si e o outro, teme a própria identidade flutuante que se conflita entre desejo de fusão e necessidade de fuga.
Muitas vezes, o bebê idealiza o interior do corpo da mãe como um Éden perfeito — um espaço de prazer absoluto, sem ameaças. Mas logo essa fantasia se rompe: o casulo da mãe revela-se povoado de rivais imaginários. O corpo reage não apenas por medo do espaço apertado, mas por uma memória ancestral de traição: nem o dentro nem o fora prometem segurança.
Para que haja possibilidade de atravessar essa geografia interna, o que está em jogo é a necessidade de se criar um espaço mental onde o dentro e o fora deixem de ser polos de terror e passem a ser articulados simbolicamente. A saída do claustro, como propõe Heinz Weiss, depende de um processo delicado em que a mente consiga construir um contêiner simbólico — uma capacidade de conter seus próprios afetos, sem precisar despejá-los sobre o mundo ou implodir. E essa transformação nasce da possibilidade de depositar em outro ser humano, na relação analítica, a experiência viva de ser compreendido e metabolizado, sem ser anulado.
Para isso, é necessário que o paciente, pouco a pouco, viva a experiência de um "espaço intermediário" suficientemente firme para acolher seus medos primitivos, mas suficientemente poroso para permitir o movimento, o desejo, a separação sem violência.
O claustro torna-se uma fortaleza interna feita da própria necessidade de defesa, mas também da impossibilidade de confiar. E a tentativa de sair — de respirar, de habitar o mundo — é vivida como uma ameaça de desintegração ainda maior. Bion, por sua vez, ilumina a possibilidade de saída: não pelo controle, mas pela lenta transformação da experiência emocional bruta em pensamento vivo. Sair do claustro é, portanto, mais do que suportar espaços abertos ou fechados: é reconstruir, com o corpo e a mente, a confiança de que é possível habitar espaços internos e externos.
Se a memória é uma ficção tecida, o claustrofóbico é aquele para quem certos fragmentos desse tecido mental permanecem vivos demais, prontos a invadir o presente como espectros. Não é que ele se lembre conscientemente do que lhe faltou, é antes seu corpo, sua respiração, sua angústia — esses modos mais arcaicos de lembrar — carregam a marca.
O que deveria ter sido sonhado — como nos rituais que guardam e pacificam os mortos — retorna em forma de assombro, como um espectro que exige ser reconhecido. Para esses fragmentos, é preciso encontrar uma narrativa capaz de dar nome.
Para entender o claustrofóbico, é preciso também escavar as camadas daquilo que alguns psicanalistas chamam de "contrato familiar" — esse pacto invisível onde a criança é investida de uma missão secreta: preservar equilíbrios narcísicos. Em um ambiente onde a separação é interditada ou demonizada, o sujeito pode aprender desde cedo que desejar respirar livremente é trair. O claustro, nesse caso, não é apenas um sintoma pessoal: é um sintoma familiar. E, nesse contexto, aprender a abrir espaço para si mesmo exige uma dolorosa travessia da culpa.
Esses contratos fundam-se em uma promessa silenciosa de "não nos decepcione". Para o claustrofóbico, essa promessa toma a forma de um cerco invisível: você poderá existir, mas apenas do tamanho e na forma que esperam de você. Sair do claustro é, assim, dar um passo para fora do contrato.
Para o claustrofóbico, essa herança pode se cristalizar na forma de uma obediência: o corpo aprende a se encolher para preservar a estabilidade familiar. Mover-se para fora dos limites impostos, seria também trair um acordo tácito de imobilidade. Luiz Alfredo Garcia-Roza, refletindo sobre repetição e acaso em psicanálise, aponta que aquilo que se repete em nós não é o que escolhemos, mas o que nos foi transmitido em estado bruto, sem elaboração
Meltzer nos ensina que o estado claustrofóbico é menos sobre a presença física de muros do que sobre a ativação de uma memória incorporada: a experiência de ser não poder se mover subjetivamente. O corpo aprendeu que qualquer movimento espontâneo poderia ser perigoso: movimentar-se é trair, parar é desaparecer. O paciente, diante da espera interminável de um elevador, de um metrô parado, de um avião fechado, não luta apenas contra a situação atual — ele luta contra a repetição do impasse estrutural que moldou seu ser
Um sintoma é menos um defeito individual e mais um esforço de sobrevivência diante de uma realidade percebida como hostil. No claustrofóbico, esse esforço se cristaliza na necessidade de manter-se em movimento — qualquer imobilização arrisca expô-lo à angústia de reviver o cárcere que presta obediência.
A experiência claustrofóbica, então, não é apenas espacial, mas temporal: o tempo que não flui é vivido como aprisionamento: a parada súbita do metrô, a fila interminável no aeroporto, o trânsito imóvel. Então o claustrofóbico vive uma eterna busca por movimento, uma recusa a permanecer em qualquer espaço ou tempo que evoque a sua rachadura secreta onde não foi possível repousar com segurança. O tempo parado, nesses casos, é vivido como uma reedição.
Toda espera, toda suspensão, toda inatividade remete ao congelamento do ser que, na infância, precisou paralisar seus impulsos vitais para garantir alguma continuidade de existência. No cotidiano, o claustrofóbico precisa aprender a reconstruir um modo de experimentar o mundo sem que cada pausa, cada silêncio, cada espera se torne um túmulo antecipado. Cultivar pequenas brechas de imaginação, imagens internas de espaços abertos, de fluxos de ar, de horizontes possíveis.
Reconstruir, dentro de si, o direito de existir com movimento e pausa. Nesse sentido, a travessia do claustro não é apenas clínica: é existencial e estética.
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