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Autossabotagem e estilhaços

Atualizado: 30 de out. de 2023


"Cavalo Assustado por uma Tempestade" de Eugène Delacroix (1824)

Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, discuto a ideia de que a autossabotagem pode ter relação com diversas questões: culpa, desconfiança, medo do triunfo, autolimitação e necessidade de separar-se do desejo do Outro.

Sob o ponto de vista da psicanálise, o sujeito é dividido. Em razão disso, não se costuma fazer referência ao termo indivíduo dentro da teoria psicanalítica (uma vez que designa aquele que não pode ser dividido). Essa divisão essencial produz conflitos. Assim, a experiência humana é conflitante. Não se trata, então, de ódio ou amor, mas de ódio e amor – o mesmo vale para o interesse e a repulsa, a aproximação e distanciamento, o vazio e o excesso.


Esse conflito central na vivência humana permite que ações aparentemente paradoxais como a autossabotagem possam acontecer. É preciso ter a cautela, por outro lado, de não querer rotular todo acontecimento desfavorável de autossabotagem. A psicanálise é muito mais profunda do que relações diretas como essa e qualquer tentativa de simplificar a experiência humana a esse ponto se trata muito mais de uma defesa diante dessa extrema complexidade.


É preciso ter o cuidado, assim, de não querer simplificar a questão do fracasso atribuindo-o diretamente à culpa ou mesmo à incapacidade do sujeito de posicionar-se diante da responsabilidade pelo seu desejo. Existem diversas razões possíveis para que alguém não alcance o que almeja. O objetivo desse texto é refletir um pouco sobre as situações em que o sujeito coloca obstáculos às suas próprias conquistas.


Freud já havia alertado, em suas primeiras experiências, sobre as reações terapêuticas negativas: “Há pessoas que se comportam muito peculiarmente no trabalho analítico. Quando lhes é dada esperança e mostrada satisfação com a marcha do tratamento, parecem insatisfeitas e geralmente pioram o seu estado". Entendo que a reação terapêutica negativa não é um ataque contra a melhora, mas um ataque contra a possibilidade de mudança. Para Joan Riviere, por exemplo, "vem do desejo de preservar um status quo, um estado de coisas que se mostrou suportável".


Autossabotagem e culpa


O triunfo ou o sucesso nem sempre vem acompanhados por prazer e bem-estar. É possível haver um sentimento de culpa pelo fato do sujeito finalmente ter conquistado aquilo que tanto queria, algo que os outros não possuem, o que o colocaria em uma suposta posição de superioridade diante de pessoas do seu convívio. A vitória pessoal, nesse sentido, pode ser vivida como uma espécie de aniquilação, estrago causado. Há, inclusive, um texto de Freud traduzido para o português como "Os arruinados pelo êxito", de 1916.


Não é incomum ouvir casos de pessoas que, após terem conseguido a tão almejada promoção no trabalho, por exemplo, ou mesmo verem um resultado do seu esforço ter obtido reconhecimento, se verem em meio a sentimentos de culpa pelo que concretizou. Dessa forma, não é só o insucesso que pode provocar sentimentos de receio ou descrença, mas o êxito e o sucesso também.


Freud afirma no seu texto de 1916 o detalhe "atordoante" de que "as pessoas ocasionalmente adoecem precisamente no momento em que um desejo profundamente enraizado e de há muito alimentado atinge a realização". Traz ainda o caso de um professor universitário que nutria o desejo de ser o sucessor do seu mestre. Quando o último se aposentou e ele foi escolhido para ser o seu substituto, caiu em uma melancolia profunda, seguida de autodepreciações diversas, deixando-o incapaz para exercer suas atividades durante muitos anos.


Para Freud, algumas satisfações, que parecem, à primeira vista, inocentes, podem ser "satisfações substitutivas" de pulsões mais agressivas, menos aceitas dentro do pacto social ou mesmo rejeitadas completamente pelos regulamentos da civilização. Isso significa, de forma bem resumida, que uma parte do sujeito pode desejar conscientemente alguma coisa, mas ao mesmo tempo rejeitá-la em razão do que isso representa em termos inconscientes.


Uma incapacidade de lidar com seus aspectos agressivos pode fazer com que o sujeito viva suas conquistas sentindo sabor de voracidade, como se sua conquista significasse uma espécie de guerra que deixa rastros de destruição. Para posicionar-se diante do mundo, entretanto, é necessário certa dose de agressividade. Em psicanálise, agressividade não é o mesmo que violência ou de provocar dano a alguém. Mesmo para sair da sua cama e lidar com a rotina de um dia, a agressividade é importante, no sentido de mover o sujeito a enfrentar obstáculos e reveses, a produzir conquistas e fazer mover o seu desejo.


Autossabotagem como guardiã da falta/desejo


A autossabotagem, entretanto, nem sempre é um mecanismo de defesa acionado pela culpa. Um forte sentimento de desconfiança da própria capacidade pode fazer com que o sujeito coloque obstáculos em seu caminho, barreiras erigidas pela dificuldade em sustentar posições que demandam, talvez, mais responsabilidades.


Além da culpa, a conquista de um objetivo pode assumir a forma de uma espécie de desorientação, do tipo “E agora?” (Ver o vídeo de Christian Dunker). A autossabotagem, nesse contexto, funciona como uma espécie de guardiã da falta – falta que organiza o desejo. Ou seja, o sujeito alimenta a falta, a ausência da conquista, mantendo aquele objetivo sempre ao alcance, mas nunca plenamente atingido. Nesses casos, conquistar algo pode equivaler a cair em uma espécie de vazio, na fantasia de que nada há mais para se desejar, equivalente à morte psíquica. Manter o desejo insatisfeito, por esse ponto de vista, seria uma forma de manter o desejo vivo.


Por esse ponto de vista, o auto-sabotador convive constantemente com uma intrigante dúvida: O que vai ser de mim se eu estiver ao alcance do meu desejo?


Autossabotagem como autolimitação


Podemos pensar ainda casos em que a fantasia inconsciente equaciona "capacidade = risco". Ou seja, ser capaz é, igualmente, não uma potencialidade, mas um risco, levando o sujeito a adotar um modo de vida em que não expressa suas capacidades, como se, assim, estivesse se distanciando da sua maldição/dom. Mais do que uma armadilha, a autossabotagem, nesses contextos, pode ser melhor compreendida metaforicamente como uma corda amarrada aos pés (colocada por ele próprio), que impede ao sujeito o "ir além".


O sujeito autolimitante, portanto, teme as suas capacidades. Pode acreditar que não é uma pessoa criativa (no sentido amplo do termo, que vai muito além de habilidade artística), quando, na verdade, prefere inconscientemente não ser. Vive, assim, uma relação interna em que ganhar é perder e perder é ganhar, mantendo-se, então, insuficiente, dependente do outro, protegido do seu próprio potencial de realização.


Autossabotagem e separação do desejo do Outro


Neste vídeo, o psicanalista Christian Dunker aborda ainda um outro grupo de autossabotadores. Refere-se àquelas pessoas que inviabilizam a sua conquista não porque almejam o autoataque, mas como uma forma desviada de ataque a um outro. Exemplifica com a situação hipotética de uma mãe que queria muito que seu filho entrasse em uma determinada faculdade. No momento da prova, estranhamente o filho erra questões que saberia responder facilmente. O que pode ter ocorrido na situação, portanto, é da autossabotagem como uma forma de separar-se, na verdade, do desejo da mãe, de forma inconsciente, muitas vezes sem que o sujeito se dê conta disso.


Ao obtermos algo que tanto desejamos, portanto, estilhaços de pulsões são ativados. Alguns desses estilhaços podem ser sentidos como perigosos, ameaçadores, fazendo com que o sujeito viva uma situação de ameaça, culpa ou desorientação. A autossabotagem, nesses casos, funciona como um mecanismo de defesa diante de tais vivências.


Referências:


Texto "Os Arruinados Pelo Êxito" de Sigmund Freud (1916).

Texto "O Ego e o Id" de Sigmund Freud (1923).

Vídeo "Existe autossabotagem? " do canal Falando Nisso de Christian Dunker.

Tradução do texto "Those wrecked by success" de Joan Riviere (1936), disponível aqui.

 
 
 
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